quarta-feira, 28 de maio de 2008

Euro 1964: quando houve Fúria

Quatro anos antes, a Seleção Espanhola abrira mão da sua vaga na Euro na fase de quartas-de-final. Com um time promissor, que contava em suas linhas com o naturalizado Di Stéfano, a desistência espanhola teria se dado em função dos temores do governo pela iminência de um confronto diante da União Soviética – oficialmente, creditou-se o abandono da competição à falta de relações diplomáticas entre os dois países, mas o outro lado da história aponta para o medo do regime franquista de receber manifestações contrárias à sua ditadura, num jogo contra um adversário tão propício a levantar essas questões. Em 1964, o infalível destino do futebol tratou de reeditar o encontro que se tentara negar, agora numa inescapável final.

O torneio daquele ano começava a afirmar uma tradição, aumentando consideravelmente o número de participações: já eram 29 os inscritos, incluindo Inglaterra e Itália, duas das ausências mais sentidas na primeira Euro. Mantendo o sistema que seria repetido até a década seguinte, os times voltariam a jogar entre si, a partir de 1962, em confrontos eliminatórios de ida e volta, para tornar conhecidos os quatro representantes que jogariam as semifinais e final, marcadas para a Espanha.

Espanhóis, soviéticos (detentores do título, fortalecidos pela classificação sobre a Itália, nas oitavas-de-final dessa segunda edição) e húngaros (futuros campeões olímpicos naquele ano, e bicampeões em 1968) constituíram classificações relativamente esperadas. A grande surpresa ficou pela definição do quarto semifinalista: a desacreditada Dinamarca obteve a vaga – e, mais surpreendente ainda, diante da improvável Seleção de Luxemburgo, que havia mandado a Holanda passear na fase anterior (1-1 em Amsterdã, no primeiro jogo, e vitória por 1-2 no segundo, também como visitante, em Roterdã – a última vitória luxemburguesa fora de casa até 1995), e só foi sucumbir aos dinamarqueses em uma partida de desempate (3-3 em casa, 2-2 fora, e derrota por 1-0 em território neutro – ou quase isso, já que o terceiro embate foi marcado outra vez para Amsterdã, diante do agora hostil público holandês).

Coadjuvantes, os dinamarqueses entraram para participar e só fizeram isso mesmo, caindo para a União Soviética por 3-0 em Barcelona. Na outra semifinal, a local Espanha parecia ter a vaga nas mãos contra a Hungria, vencendo por 1-0 até os 84 minutos de jogo, quando Bene empatou e pôs o drama de uma prorrogação desgastante e de sucesso duvidoso: felizmente para os mais de cem mil espectadores presentes no Santiago Bernabéu, um gol de Amancio aos 115 minutos marcou o 2-1 e garantiu a classificação à final.

E a confirmação do duelo Espanha – URSS foi a única certeza ao fim das semifinais, naquele 17 de junho. Perguntas pareciam brotar do chão conforme se arrastavam os quatro dias de intervalo entre o primeiro jogo e a decisão: Franco iria à partida? Se sim, qual sua reação em caso de derrota para os representantes dos seus inimigos ideológicos? Seriam tocados os hinos nacionais? As bandeiras seriam exibidas? E o público, seria capaz de evitar incidentes diante daquela oportunidade? Finalmente, sobre o futebol: a Espanha teria pernas para, depois de sobreviver a uma complicada prorrogação, triunfar diante de um time considerado o melhor da Europa, cujo goleiro era o melhor do mundo, premiado com o Ballon d'Or em 1963?

Todas as questões receberiam um ¡sí! como resposta no 21 de junho de 1964. O dia amanheceu escuro, as nuvens tingindo de chumbo um céu que prenunciava muita chuva, mas derramava apenas uma garoa fina sobre Madrid. Fina e incessante, até a hora do jogo, marcado para as 18:30. Com a bola rolando, a ameaça viraria um temporal em certos momentos, mas nada assustador aos cento e vinte mil espectadores presentes nas gradas do Bernabéu. A chuva era um detalhe. E o jogo, uma batalha difícil de ser vencida. Trajando um fardamento todo azul, por ter perdido o sorteio dos uniformes – a União Soviética entrou com camisas vermelhas e calções brancos –, a Espanha abriu o placar com 6 minutos, no gol mais rápido de uma final de Eurocopa, por meio de Pereda. Os aplausos e comemorações ainda eram ouvidos quando Khusainov, dois minutos depois, empatou o jogo e devolveu a preocupação aos torcedores.
Sobre o gramado encharcado, desenvolvia-se então um jogo de iguais, sob um placar igual. Aquilo tudo era ruim para os espanhóis, temerosos do cansaço da prorrogação das semifinais. Seria preciso marcar um gol logo, antes que os soviéticos crescessem para não mais darem chance de recuperação. O gol não vinha. Mas a Espanha não deixava de equilibrar as coisas. Faltando seis minutos, Rivilla toma a pelota, antecipando um passe de Ivanov. Com o balão dominado, avança pela direita e passa para Pereda. O autor do primeiro tento espanhol, sob a marcação de Mudrik, encontra num cruzamento a melhor opção. Ele manda o centro, mas não é uma bola alta, boa de cabecear: é um tiro forte, próximo ao chão, quase um chute. Marcelino resolve arriscar: quase raspando o solo, salta para mandar uma cabeçada impossível no canto esquerdo de Yashin, rente ao poste. Incrédulo, o “aranha negra” não tem reação (foto acima).

Dois a um para a Espanha, placar final. Não houve cansaço. Houve, sim, Fúria para, a despeito de todas as brigas políticas, trazer ao país um título. O único título da Seleção Espanhola.

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