domingo, 7 de setembro de 2008

Rapidgeist

Na manhã do dia 22 de junho de 1941, sob o pretexto de vingar violações fonteiriças, a Alemanha rompeu o pacto de não-agressão firmado dois anos antes com a União Soviética e investiu sobre o território governado por Stalin. Mais de três milhões de soldados nazistas cruzaram três mil quilômetros rumo à Europa Oriental para dar início à Operação Barbarossa – nome escolhido por Hitler em homenagem a Frederico I, o Barba-Ruiva, Sacro Imperador Romano-Germânico do século XII.

A invasão abria a maior e mais sangrenta campanha militar da história – e, descobrir-se-ia, o primeiro passo alemão na direção da derrota na Segunda Guerra Mundial. Em Berlim, no entanto, o tema daquele dia de junho era outro. O conflito durava havia dois anos e, mesmo que sempre pulsante no noticiário, já não era capaz de impedir o andamento da rotina. A marcha sobre as cidades soviéticas aparentava ser mais um dos tantos fragmentos de uma Guerra cujo fim estava além do horizonte. Antes de marcar a entrada nas terras vermelhas, o domingo seria o dia da final do Campeonato Alemão de 1940/41 – a decisão do torneio monopolizava as discussões na capital.

À tarde, 95 mil pessoas foram ao Olympiastadion presenciar o encontro entre o Schalke-04 e o Rapid Viena (a Áustria era parte da Alemanha desde o Anschluß de 1938). O jogo seria de rivalidade extrema: embora a propaganda nazista buscasse mostrar um Estado unido, pesava a tradicional divisão norte-sul, fortalecida pelas discrepâncias religiosas – os alemães do norte, “prussianos”, de maioria protestante, viam os austríacos como inferiores, ao passo que estes, na maior parte católicos, consideravam os prussianos culturalmente atrasados.

O sentimento anti-Alemanha dentro do futebol aumentou consideravelmente depois da morte misteriosa de Matthias Sindelar, grande ídolo do Wunderteam austríaco, em 1939. No ano seguinte, raros foram os jogos passados nos estádios da Áustria que não terminaram em batalhas campais – num duelo entre uma equipe de Viena e o quadro da Luftwaffe (Força Aérea Alemã) de Hamburgo, o goleiro do time austríaco saiu de campo com ferimentos graves, vindo a morrer no hospital.Para aquele domingo, o Schalke ainda carregava a pecha de “time do regime”. Vencedores de cinco dos sete campeonatos disputados entre 1934 e 1940, os jogadores de Gelsenkirchen recebiam privilégios e eram usados na propaganda nazista. Na final do Campeonato Alemão de 1938/39 haviam massacrado o austríaco Admira Viena por 9-0 e agora, naquele 22 de junho de 1941, queriam fazer o sol do verão começado na véspera contemplar um escore semelhante. Pareceu ser possível bater o Rapid por goleada: em menos de dez minutos, o placar era de dois a zero para o Schalke; no fim do primeiro tempo os austríacos perderam um pênalti e, tão logo voltaram dos vestiários, sofreram o terceiro gol. Àquela altura, dizem relatos provavelmente lendários, quem olhava para o troféu de campeão via o nome da equipe alemã já gravado no metal.

Mas o Rapid não era um goleável sem reação. Esse time possuía um artilheiro genial, Franz Binder (ao lado), 1006 gols em 756 partidas na carreira, e também contava com alma. Os torcedores chamam de Rapidgeist, espírito Rapid, a garra que realizou a impossível remontada em 1941. O espírito entrou em campo. “Antes de percebermos o que havia acontecido, o jogo estava em três a três! Não conseguíamos entender como isto foi possível. Parecia um pesadelo”, afirmaria, entonação traumatizada, um atleta do Schalke no final da partida. Georg Schors anotou o primeiro dos de Viena aos 61 minutos, e a seguir veio Binder, aos 62 e 63 (este, de pênalti), igualando a contagem. Três gols em três minutos – era a blitzkrieg sendo adotada no futebol, contra os próprios alemães. O atordoado Schalke sofreria o hat-trick de Binder na seqüência, fechando o placar em 3-4. Após a partida, Binder seria convocado para servir ao exército alemão, não jogando mais pela seleção nacional de futebol.

O público assistiu a tudo chocado. Igualmente atônitos, os representantes de Gelsenkirchen dentro de campo acusaram os austríacos de terem subornado o árbitro, que lhes proporcionara dois pênaltis. Uma versão nunca comprovada. Para a história, ficou a dupla tragédia nazista do dia 22 de junho de 1941: enquanto começava a fracassada campanha na União Soviética, Berlim assistia à queda do Schalke e à coroação do Rapid Viena como único não-alemão a vencer o campeonato local.

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