sábado, 5 de maio de 2007

El espíritu de Juanito

Em homenagem ao número de camisa que ele vestia, os torcedores presentes no Santiago Bernabéu ecoam seu nome até hoje no sétimo minuto de cada partida. Muitas viradas históricas foram comandadas por ele. Um jogador que jamais desistia enquanto o juiz não apitava o final do jogo, que contagiava toda a equipe com o seu pensamento de que, era sim possível a reversão dos mais adversos placares. Temperamental e capaz de dar a vida pelas cores do clube que defendia, este era Juan Gómez González, mais conhecido como Juanito, ídolo do Real Madrid por dez intensos anos.

Nascido na cidade de Fuengirola, sul da Espanha, em 1954, ironicamente iniciou a carreira no outro clube da capital: ingressando no Atlético de Madrid em 1972, permaneceu nas equipes de aspirantes colchoneras por dois anos, até ser dispensado em meio à recuperação de uma fratura na tíbia. Traído, abandonado e, felizmente, incapaz de desistir, tentou o recomeço no modesto Burgos. Em 1975/76 conduziu a equipe ao título da segunda divisão nacional ao final da temporada e, no ano seguinte, debutando na elite, ajudou a equipe a manter a categoria com atuações de gala que lhe valeram o título de melhor jogador do campeonato.

De preterido pelo Atlético a maior futebolista do país em poucos anos, um Juanito em ascensão fenomenal despertou interesse do Real Madrid. Ainda em 1977, o clube merengue repassa 27 milhões de pesetas aos do Burgos e leva Juan Gómez ao Santiago Bernabéu. A mudança brusca de ares também se manifestaria na alcunha do jogador, com o passar das temporadas: de um informal Juanito, apelido que nunca perdeu em campo, o camisa 7 começou a ser saudado pelos aficionados como “Don Juan”, em alusão aos títulos de nobreza espanhola.


No Real Madrid, Juanito empilharia conquistas e atuações inolvidáveis. Jogando ao lado de outras legendas do clube, como Santillana, Stielike, Vicente del Bosque, José Antonio Camacho, Hugo Sánchez, Butragueño e outros nomes destacados, Juanito seria protagonista de várias partidas históricas, seja no heroísmo, seja na vilania - a primeira mostra de seu comportamento temperamental viria logo em 1978, quando o jogador foi suspenso por dois anos de jogos por qualquer competição européia, após agredir o árbitro Adolf Prokov, da Alemanha Oriental. Em seus dez anos defendendo o Real Madrid (de 1977 a 1987), Juanito conquistou cinco Campeonatos Espanhóis (1978, 1979, 1980, 1986 e 1987), duas Copas do Rei (1980 e 1982), 2 Copas da UEFA (1985 e 1986) e uma Copa da Liga Espanhola (1985), além de ter sido o artilheiro do Campeonato Espanhol de 1984, com 17 gols.

Mas não foram os títulos o principal conversor de Juanito em mito: foram as grandes viradas, as "remontadas", como dizem os espanhóis, que ele liderou. Sim, o Real Madrid daqueles anos era um timaço, mas também sofria quando jogava partidas eliminatórias fora de casa - muitas vezes, perdendo por desvantagens tremendas, que só poderiam ser revertidas na base da qualidade, mas sobretudo, da raça. Quando estas desvantagens ocorriam, todo o time dava tudo de si para recuperá-las, mas só um daqueles jogadores tornou-se símbolo da superação, e ele era Juanito. Incorporando como poucos o sentido da frase "dar a alma pela camisa", Juanito era um líder dentro e fora das quatro linhas, inspirando e instigando seus companheiros a dar a volta por cima, mesmo nas situações mais adversas. O anedotário futebolístico conta que, para manter sempre o discurso de recuperação possível, Juanito teria formulado “dez mandamentos”:

1. Em caso de derrota na partida de ida, fora de casa, o time já devia discutir, durante a viagem de volta à Espanha, maneiras de reverter o placar - isso quinze dias antes da segunda partida!
2. Durante a semana, manter na mente o pensamento de que "o time vai recuperar o placar". Camacho, companheiro de time, ajudava a manter o foco, escrevendo a mensagem todos os dias no quadro-negro do vestiário.
3. Intimidar o adversário desde o túnel da entrada em campo, seja na troca de olhares, nos gestos ou nas palavras.
4. Na hora do sorteio com o juiz, sempre pedir para começar com a bola. O adversário "não pode tocá-la" nem no início da partida.
5. A primeira jogada do time na partida deve acabar na linha de fundo ou arrancar um grito da torcida.
6. Cometer a primeira falta do jogo. Se for dura e intimidar o adversário, melhor.
7. Desferir o primeiro chute do jogo. Não importa se for pra fora, desde que tenha força suficiente para alcançar as placas de patrocínio, fazendo barulho.
8. Encurtar o intervalo e voltar ao gramado antes que a arbitragem mande, sempre demonstrando pressa.
9. Traçar uma linha imaginária no seu próprio campo e evitar a todo custo que o adversário passe dela.
10. Provocar tumultos com o adversário, para desestabilizá-lo e fazer com que a torcida se contagie ainda mais.

A veracidade dos mandamentos é questionada, mas o Madrid das numerosas remontadas tinha essas características – em qualquer torneio eliminatório doméstico ou internacional. Dessas recuperações que poderiam preencher várias páginas de almanaques de estatística, as mais notórias foram as obtidas no bicampeonato da Copa da UEFA, em 1985 e 1986. Na primeira conquista, na temporada 1984/1985, o Real Madrid, ao longo da campanha, recuperou espetacularmente os placares nos jogos da segunda fase (quando perdeu para o Rijeka, da então Iugoslávia, por 1-3, na ida, e venceu na volta, por 3-0), das oitavas-de-final (quando perdeu para o belga Anderlecht por 0-3, no confronto de ida, e fez 6-1 no Santiago Bernabéu), e das inesquecíveis semifinais, diante da Internazionale, de Milão, onde a derrota por 0-2, fora de casa, seria mais uma vez revertida, com uma vitória por 3-0 na capital espanhola.

O bicampeonato na temporada seguinte traria outras grandes viradas. A das oitavas-de-final está até hoje entre as mais celebradas do futebol europeu moderno: enfrentando os alemães do Borussia Mönchengladbach, o Real Madrid não viu a cor da bola e levou terríveis 5-1 do que a imprensa germânica chamava de “colosso alemão”. Fazia-se a necessidade do maior dos milagres para o time branco, ao mesmo tempo em que Juanito precisava ser mais Juanito do que nunca. Foi. O Bernabéu lotou e o Madrid entrou em campo para massacrar. Juanito foi maestro durante a partida inteira e deu assistências para dois dos gols que formaram os sensacionais 4-0 e classificaram o time. Ao ser substituído, nos acréscimos, pouco depois do quarto gol (marcado por Santillana aos 89), Juanito proporcionou a cena mais emblemática da carreira, deixando o gramado dando socos no ar, comemorando extasiado a remontada como se houvesse marcado um tento.

Nas semifinais, outro duelo contra a Internazionale reafirmou os tempos lendários vividos pelo madridismo. Como no ano anterior, o quadro espanhol caiu na Itália por 3-1. Regressando de Milão, Juanito lembrou do feito no ano anterior e proferiu uma frase célebre, misturando castelhano e italiano: “Novanta minuti in Bernabéu son molto longos”. Na volta, o Madrid venceria por 5-1 e passaria à final para erguer a segunda Copa da UEFA em seqüência.


Juanito já estava alçado à condição de herói pelos torcedores quando o seu temperamento pesou novamente e abreviou sua trajetória no Madrid. Era a temporada 1986/87 e, depois de duas conquistas na Copa da UEFA, os merengues voltavam à Copa dos Campeões da Europa. Outra grande campanha do time espanhol o levou às semifinais, diante do Bayern München, da Alemanha. Dessa vez, houve impotência para conquistar uma nova virada: o Madrid perdera por 4-1 fora e, em casa, só fazia 1-0. Juanito perdeu a calma: explosivo, sem aceitar a eliminação, agrediu Lothar Matthäus com uma pisada na cabeça e, reincidente, foi suspenso por cinco anos de competições européias. Àquela altura com 33 anos, idade avançada para um jogador ofensivo, Juanito provavelmente não jogaria outra vez um torneio internacional, sendo dispensado pelo Madrid ao final da temporada.

Esse impedimento de jogar competições fora da Espanha provocou desprezo dos grandes clubes, restando ao camisa 7 uma ida ao Club Deportivo Málaga, onde jogaria até encerrar a carreira, em 1989. Triste por deixar a equipe que aprendera a amar, declarou: “Não me sinto humilhado por sair do melhor time do mundo e ir para um da segunda divisão. Vou ao Málaga, mas voltarei algum dia como treinador do Madrid!”

O desejo de Juanito certamente se cumpriria ao longo dos anos seguintes, mas o destino esfaqueou as ilusões pelas costas. No dia 2 de abril de 1992, o homem que dedicara a vida ao Real Madrid encontraria a morte aos 37 anos, num acidente automobilístico em Toledo – ia a Mérida após assistir a uma partida entre os merengues e o Torino pela Copa da UEFA. Três dias depois, talvez não por coincidência, o Real Madrid que o consagrou e o Burgos que o lançou enfrentaram-se em rodada do Campeonato Espanhol, sob um manto de luto. Ninguém trajou o número 7 naquele dia. Até hoje, quando o Real Madrid consegue remontar um resultado que todos davam como impossível, os torcedores brancos lembram o legado que ele deixou e afirmam: “el espíritu de Juanito estuvo aqui”.

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