quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Campeonatos inexistentes

A confusão reinante no comando do futebol peruano e as punições temporárias a tudo o que lhe diz respeito – incluindo aí os pobres clubes que pouco ou nada têm a ver com a história – botou ontem, em Luque, três bolas nomeadas “vacante” no sorteio dos grupos para a 50ª Libertadores da América de todos os tempos, a de 2009. Não se sabe quem as tomará. O Peru tem até dezembro para resolver suas questões e, talvez, recuperar as vagas que são suas por direito, enquanto urubus de outros países torcem secretamente para que o problema continue, restando três vaguinhas inteiras no maior torneio do continente esperando distribuição a critério da Confederação Sul-Americana.

Essa espécie de inexistência do Campeonato Peruano em relação às competições internacionais lembra, ainda que vagamente, o período mais glorioso do futebol da Colômbia, mais de meio século atrás. Daquela vez os motivos eram diferentes, causados pelos próprios clubes e não pela Federação, mas tanto em um caso como no outro, a FIFA descartava a validade dos resultados das competições. Tudo porque, na Colômbia, o que se tinha, para a máxima organização do futebol mundial, era uma “liga pirata”. Vamos à história...

Levado ao país no início do século XX por engenheiros ingleses encarregados da construção da ferrovia entre Barranquilla e Puerto Salgar, o futebol foi conquistando a gradual adesão dos colombianos. Clubes e torneios pipocaram nas décadas seguintes, e em 1924 nasceu uma certa Liga de Fútbol del Atlántico, reunindo equipes de cidades da costa atlântica da Colômbia. Em 1936 foram introduzidos os clubes do resto do país, o que acrescentava os importantes centros de Medellín, Cali, Manizales e Bogotá, e a Liga ficou conhecida como Asociación Colombiana de Fútbol (Adefútbol). Tudo, porém, permanecia amador. Em 1947, o visionário Alfonso Quevedo*, presidente do Millonarios e representante dos clubes na Adefútbol, iniciou um movimento pelo profissionalismo no país. Recebeu o apoio das principais equipes, mas as ligas menores, menos estruturadas, fizeram oposição. Diante do apoio dos responsáveis pela Federação Colombiana aos amadores, os favoráveis ao profissionalismo rasgaram suas ligações com a Adefútbol e criaram uma liga independente, a División Mayor (Dimayor).

A temporada inicial foi disputada em 1948, contando com 10 participantes: de Cali vinham o América e o Deportivo, de Medellín o Atlético Municipal e o Independiente, de Bogotá o Independiente Santa Fé, o Millonarios e a Universidad, de Barranquilla o Junior, e de Manizales o Once Deportivo e o Deportes Caldas (os dois que, em 1959, fariam a fusão da qual nasceu o Once Caldas). Para facilitar os deslocamentos, um acordo com a Empresa Aerovías Nacionales de Colombia concedeu 45% de desconto nas tarifas das passagens aéreas usadas pelas delegações. O Independiente Santa Fé ergueu a taça inaugural com 12 vitórias, 3 empates e 3 derrotas nas 18 rodadas disputadas, mas a grande conquista do primeiro campeonato foi a própria moral da competição: a liga apresentou públicos recordes, atraindo investimentos de todas as partes.

No ano seguinte, os clubes enriquecidos adotaram uma política de contratações inusitada, pouco ética, até: sem pagar qualquer coisa às equipes de outros países, buscavam os jogadores de lá oferecendo a eles salários atípicos para a época. Havendo então uma greve dos futebolistas profissionais argentinos, o momento histórico contribuiu para a formação daquela que foi a primeira liga estelar do mundo – na memória dos torcedores, os anos em que a El Dorado das lendas em que os conquistadores espanhóis acreditavam realmente existiu, mas no futebol. O Millonarios tirou do River Plate ninguém menos que Adolfo Pedernera, um dos líderes da Máquina, como se fez conhecer a poderosa esquadra riverista dos anos 40. Ele foi recebido por 5 mil torcedores no Aeroporto de Techo, em Bogotá. Alguns meses depois, Pedernera voltaria ao seu país para buscar outros dois reforços do River para o quadro da capital colombiana: Néstor Rossi e Don Alfredo Di Stéfano.

As demais equipes também foram retratos fiéis do esplendor daqueles anos, enchendo-se de futebolistas sedentos por riqueza. O Independiente de Medellín formou um time cheio de peruanos, que foi chamado de “La Danza del Sol”, comparando o estilo do seu jogo à cerimônia inca. O Deportivo Cali contratou argentinos, mas teve no peruano Valeriano López seu grande nome. O Independiente Santa Fé tirou do San Lorenzo argentino Héctor Rial, que depois brilharia no Real Madrid, e também conseguiu reforços britânicos: Neil Franklin e George Mountford do Stoke City, e Charlie Mitten do Manchester United. O Deportivo Pereira, que entrou na Dimayor em 1949, foi atrás de atletas paraguaios e até botou um italiano, Luigi di Franco, em suas linhas, enquanto o Cúcuta Deportivo, estreante em 1950, contratou doze jogadores do Uruguai – sendo oito deles parte do elenco campeão mundial pela Celeste naquele ano. O brasileiro Heleno de Freitas foi contratado pelo Atlético Junior e virou estátua em Barranquilla.

Tamanha voracidade das equipes colombianas por nomes internacionais, sem compensar financeiramente os clubes em que eles jogavam, obviamente gerou ódio. A própria Federação nacional, ainda pró-amadorismo, esteve ao lado de outras da América do Sul protestando. Elas conseguiram, em 3 de maio de 1949, que a CONMEBOL retirasse os clubes da Dimayor das suas listas de associados. Em outubro daquele ano, a FIFA seguiu a tendência, banindo a liga profissional da Colômbia. Daí o termo liga pirata. E daí a sua inexistência. Oficialmente. Clandestinamente, no entanto, o sucesso seguiu, tanto que muitas das contratações do parágrafo anterior vieram depois dessa decisão.

Os estádios continuaram lotando e, por mais que todos tentassem montar um plantel forte ao seu modo, ninguém podia com os estrangeiros que compunham o “Ballet Azul” do Millonarios. O clube, que em certo momento teve apenas dois jogadores colombianos no elenco, venceu quatro dos cinco campeonatos disputados no período em que El Dorado durou, entre 1949 e 1953. Só um deles, o de 1950, foi para outras mãos: o Deportes Caldas, cuja grande estrela internacional era... um goleiro! – o lituano Vitatutas Kriscuonas, numa prova de que apostar no defensivismo vem de longa data em Manizales.

O fim de El Dorado foi gestado pela própria necessidade de reconhecimento da liga. Em 1951, no chamado Pacto de Lima, a Dimayor retornou à legalidade no cenário internacional ao aceitar os termos da CONMEBOL, que previam a devolução aos clubes de origem, em 1954, dos jogadores contratados irregularmente. Antes do fim do prazo, em 1952, o já famoso Millonarios foi convidado para disputar o Torneio do Cinqüentenário do Real Madrid, no qual venceu os merengues por 2-4. O encantado Madrid, após uma briga com o Barcelona, contrataria Di Stéfano no ano seguinte (e também Rial, do Santa Fé), começando a construir seu lendário time pentacampeão europeu entre 1956 e 1960. A saída de Don Alfredo, autor de 88 gols em 102 atuações na Colômbia, marcou o encerramento simbólico de El Dorado, uma era definitivamente sepultada com a entrada em vigor do Pacto de Lima.

O Campeonato Colombiano nunca mais foi o mesmo. Mas aquela curta experiência de inexistência oficial deu aos aficionados de lá, ao menos, uma doce lembrança de glória. O mesmo não acontecerá com os peruanos de hoje, que nada de produtivo têm a tirar da sua exclusão temporária dos quadros continentais.

2 comentários:

Maurício Brum disse...

* Em 1973, Quevedo seria o responsável por conseguir junto à FIFA a confirmação de que a Colômbia sediaria a Copa do Mundo de 1986. Sem condições econômicas, porém, o país desistiria do compromisso em 1982.

Germano Jaeschke Schneider disse...

Muito interessante a história do Eldorado. Tu não sabe quem financiava esses clubes? Os cafeicultores?

www.futebolforca.com