sábado, 20 de junho de 2009

A caixa mágica do seu Luiz

IJUHY – Há um tesouro na rua Bento Gonçalves, em Ijuí. Nenhum mapa da cidade indica o local com um X e nem as preciosidades estão guardadas dentro de um baú enfurnado sob palmos e palmos de areia. É uma caixa de papelão. Umas fotos em preto e branco. Uns pedaços de algodão e de metal, que não é ouro, mas uma liga supostamente menos nobre. É uma vida. Há um tesouro na rua Bento Gonçalves, em Ijuí, e seu guardião quer exibi-lo ao mundo.

Luiz Garbinato, que já foi Garbinatto, mas subtraiu um tê dos papéis por conta das exigências para obter a cidadania italiana, nasceu em 1933 na Ajuricaba que o ex-gremista Carlos Eduardo devolveu ao mapa do esporte-rei. Por aquelas coisas que a razão não explica, quiçá por ter sido escolhido pelos deuses do futebol, atendeu a vocação para colecionar histórias do interior. A mais antiga foto sua nos muitos álbuns que formou mostra Garbinato com quinze anos, estudando já em Ijuí, em meio aos festejos do décimo aniversário do Esporte Clube São Luiz, em 1948. Mas há mais, há muito mais. Quadros ijuienses perfilados, listagens de partidas de cinco décadas atrás, lembranças de eventos, outras equipes da Região Noroeste do Estado em campo, flagrantes de entregas de faixas, momentos de partidas em andamento captados à perfeição por precárias câmeras interioranas da década de 1950, flâmulas, Copas e balões de couro.

O banal dos outros convertia-se, ao seu olhar, em material que não podia faltar para os seus registros. Hoje, viraram raridades. “Se soubessem que eu tenho isso aqui, iam enlouquecer”, diz. Garbinato foi zagueiro. Defendeu o São Luiz num período em que o clube vestia um fardamento listrado verticalmente em vermelho e branco, hoje completamente esquecido, mas também foi a campo com as cores do outro grande clube de Ijuí, o Grêmio Esportivo Gaúcho. Jogou em tempo pródigo para as disputas citadinas, vivendo os Campeonatos Ijuienses disputados em triangulares, na época em que o desconhecido e efêmero São José da cidade exercia o papel de lanterninha. Amador no esporte, formou-se em contabilidade, guardou a pelota da sua última partida na Colmeia do Trabalho e bandeou-se para trabalhar no Frigorífico de Três Passos em 1954.

Gremista, corinthiano e vascaíno, resquícios duma época em que o rádio fazia interioranos elegerem equipes do centro do país para torcer, divertia-se em desenhar escudos dos times e caricaturar os ídolos. Capaz de recitar de memória a escalação inteira da Seleção Brasileira do Maracanazo, foi a Três Passos e levou o futebolismo impregnado até a medula. Lá, viu clubes nascerem e morrerem. Fê-lo dentro do palco, com o olhar de quem participa, e não como um espectador inerte. Se o município abrangia toda a Região Celeiro, incluindo em seu território as áreas das atuais Santo Augusto, Chiapetta, Coronel Bicaco, Campo Novo, Redentora, Miraguaí, Boa Vista do Buricá, Humaitá e Crissiumal, no futebol os nomes eram só dois: Minuano e Juventus.

O gélido Minuano cortava as campinas três-passenses com mais destaque. Em 1955 e 1956 conquistou os dois primeiros títulos da cidade, e por aquela época já vencera também a Chave Amarela do Gauchão de Amadores, antes de ser eliminado pelo forte Internacional de São Borja, nos mata-matas (derrotas por 3 a 2 fora de casa e 1 a 4 em Três Passos). Então uma fase preliminar do estadual da categoria, a série Amarela era disputada contra o Oriental de Três de Maio, o Juventus de Santa Rosa e o campeão de Santo Ângelo, definido nos triangulares entre Tamoio, Elite e Grêmio Santo-Angelense. Fosse uns anos mais tarde, o clube poderia se dizer campeão do Rio Grande – em 1959 os grupos coloridos seriam transformados cada qual num campeonato independente, divisão mantida até 1970.

No Estádio Municipal Eurico Lara, antigo nome do campo utilizado ainda hoje para o futebol em Três Passos, o Minuano de Garbinato recebeu quadros de todos os cantos do Estado, incluindo o Juventude de Caxias do Sul e o Nacional de Porto Alegre, que contava com o lateral Ortunho, mais tarde herói no Grêmio. Acostumou-se às conquistas contra equipes de fora do país – em casa, com um 5 a 2, venceu o Torneio Banco Agrícola diante dos argentinos dum certo Guarany de Oberá; da cidade de El Soberbio, na Província de Misiones, voltou com o troféu da competição comemorativa ao terceiro aniversário do quadro local. Aí, de um golpe só, sumiram o Minuano e o Juventus. Como numa festa em que a música para no melhor momento, a administração municipal decidiu reformar o estádio, deixou os dois sem ter onde jogar e, como as obras não terminassem, os esféricos de couro murcharam por toda a Três Passos querida.
“O futebol no interior não tem como ficar vivo sempre”, lamenta Garbinato, “mas a gente procurava evitar que ele parasse”. E que lugar melhor que a VÁRZEA para recuperar o espírito? Foi jogando nos campos de terra do município que o futebol voltou. Marcas registradas do Frigorífico de Três Passos, a Missioneira e o Corcovado ressurgiram por seus funcionários como clubes esportivos. Logo os times eram formados por mais pessoas do que apenas trabalhadores do frigorífico. Sem substituições permitidas pela regra, montavam-se quadros de aspirantes, para que os reservas atuassem. O time com referência às Missões foi mais longe do que o que remetia ao Rio: enquanto o Corcovado encerraria suas atividades, o Missioneiro conquistou um tricampeonato citadino entre 1960 e 1962, filiou-se à Federação Riograndense de Futebol e reeditou as glórias da cidade no estadual de amadores – em 1962, saiu vice-campeão da Série Amarela (agora um campeonato próprio), derrotado na decisão pelo América de Tapera, com um empate em casa e uma derrota por 1 a 0 fora, porque “o goleiro titular não jogou lá”. A taça desse vice-campeonato, seu Luiz também a guarda.

A cidade incendiou-se novamente em paixão, até Juventus e Minuano retornaram. Por alguns anos, enfrentaram-se os dois, mais o Missioneiro, no citadino. Questionou-se se não valia a pena partir para o profissionalismo, unindo forças. No início de 1966, representantes de cada clube foram convidados para uma reunião que discutiria o tema. Garbinato se opôs: com um time só não haveria motivação, nem rivalidade, mas foi voto vencido. Em fevereiro, a fusão do trio três-passense deu origem ao Três Passos Atlético Clube, o TAC. Nas cores, o rompimento das ligações com o passado ficava explícito: para não tomar nenhum partido, aboliram o vermelho do Juventus, o azul do Minuano, o verde do Missioneiro e o branco de todos eles. A nova equipe vestiria amarelo e preto, ao estilo do Peñarol. Mas o profissionalismo era só até a metade. Com exceção de uns poucos privilegiados de mais nome, a maioria dos jogadores precisava de outros empregos para viver – quando se contratava um atleta de fora, a regra de ouro dos diretores do futebol era, antes, assegurar-lhe um lugar no setor de serviços da cidade.
De cima para baixo e da esquerda pra direita: Juventus, Missioneiro, Minuano e TAC, em uma das suas primeiras formações

O entusiasmo dos primeiros anos levaria o TAC a conquistar a Terceira Divisão do Rio Grande do Sul em 1969. Luiz Garbinato, que, apesar de contrário à fusão, seguiu apoiando o time, viu seus temores virarem reais pouco tempo depois. Os anos passavam e a comunidade se afastava. O dinheiro faltou. Nas cabeças do clube, jogava-se na loteria esportiva para tentar ganhar algum dinheiro e salvá-lo. Luiz de Medeiros, o dirigente visionário que após a morte seria homenageado substituindo o nome de Eurico Lara no estádio local, via seus projetos de investimento na estrutura da agremiação se complicarem dramaticamente. A justiça nomeou uma comissão interventora de três pessoas para tentar mudar o destino do clube que já não podia se manter – Garbinato foi o tesoureiro da comissão, cuja missão era administrar o dinheiro enviado pela Secretaria da Educação para a construção de um ginásio nas cercanias do estádio, e sanar o déficit do TAC. As verbas do ginásio foram insuficientes – enquanto em Bagé, terra do presidente Emílio Garrastazu Médici, sobravam cruzeiros para construir o segundo maior ginásio do Rio Grande do Sul, em Três Passos foi preciso recorrer a outras fontes para conseguir cobrir a quadra.

Quanto ao TAC, a comissão conseguiu pagar as dívidas trabalhistas, mas o legado não foi além disso. O estádio, doado pela prefeitura ao clube no momento da sua fundação, foi devolvido à administração municipal, e assim segue até hoje. O futebol da cidade desapareceu por anos. Em 1986 um espectro do Minuano tentou retornar sozinho ao cenário futebolístico, mas a ideia morreu no parto. Três anos depois, quando Garbinato deixou Três Passos para voltar à Ijuí em que vive atualmente, o TAC ensaiava um regresso, que não durou meia dúzia de temporadas. Sua última volta ao profissionalismo só aconteceu nesta década, em 2005, e por iniciativa de pessoas que Luiz Garbinato desconhece. Só sabe que fizeram bem. Respeita os abnegados que batalham para manter o futebol interiorano, como ele sempre fez: “eu era aquele cara que, no dia do jogo, ia abrir o estádio, botava a bilheteria a funcionar, e depois fardava e entrava em campo”.

Neste sábado o guerreiro TAC de 2009, cuja campanha surpreende aos mais INCAUTOS, recebe o São Paulo de Rio Grande em mais uma rodada da Segundona Gaúcha. Uma vitória pavimenta o caminho rumo à próxima fase. Garbinato não estará lá. Nunca mais foi a um jogo do time, embora tenha vontade de observar como as coisas andam, tanto tempo depois. Guardião de uma história que muitos desconhecem, sonha em ver, um dia, todo o seu acervo exposto num Museu do Esporte, de preferência em Três Passos. Mas quer algo sério, para que todos os torcedores possam ter acesso. Para que os antigos recordem as jornadas de antanho e os mais novos compreendam a luta e a grandeza ocultas que há em cada time do interior. Enquanto não lhe oferecerem garantias, suspeita que seu material reunido ao longo de uma vida ficará em mãos inconfiáveis, desvalorizado num canto. Até que se aprenda a preservar a memória, a mágica caixa de papelão do seu Luiz será o lugar mais seguro para tamanha riqueza.Todos os links (trechos do texto em negrito e preto) levam para mais fotos.

6 comentários:

Yuri disse...

Há muito quero comentar sobre esse post, mas conspirações mil me impediram. Farei-o agora.

Muito bom ver gente como o Seu Luiz!!! Um grande entusiasta do futebol, sem dúvida. Me entristece saber que desde aquela época os mais antenados verificavam que não havia como o futebol interiorano sobreviver por muito tempo. Muito menos agora... ou vende a alma, ou nada de ludopédio na cidade.


Também gostei de ver que o homem é corintiano*, assim como eu. Gremista de geografia e vascaíno de ouvido, também. Engraçado como o tão decatado passado tinha menos pudores quanto a isso. E a tradição era mais forte que nunca, ou estou errado? Deve ter vibrado com as glórias alvinegras do início da década de 50, quando foi montado um dos maiores, talvez o maior esquadrão do Timão. E vejam só, incautos: antes de Pelé, falava-se em 4 grandes, e um deles era a Lusa, como comprova seu Luiz em seu desenho! Que continuou a ser grande por toda a década de 60. Só depois perdeu espaço para Guarani e Ponte.

Mas o que eu achei mais legal é que em meio a tantos clubes extintos, amadores, e minúsculos no cenário nacional, eu li várias vezes a passagem e não associei o "Juventude de Caxias do Sul" ao Juventude que está na B. Só fui ver que era o mesmo Juventude quando vi a foto da flâmula, e MESMO ASSIM, ainda demorei uns 30 segundos para associar os dois...


*Descobri agora porque houveram clubes gaúchos chamados Corinthians, inclusive um em Cruz Alta. Era homenagem mesmo!

Vinicius disse...

Oi Seu Garbinato, meu candidato a deputado estadual em 1982 e a prefeito em 1985. Jogador do meu Minuano, e de um Missioneiro que fiz parte por dois anos(1964/65) com Dr. Nelson Cé e Alcides da Ross, Sergio Barra com atleta.No Minuano busquei trazê-lo de volta em 1986, com pouco apoio, fui campeão Citadino da FGF, empatando e ganhando do Juventus. Lutei, junto com outros desposrtistas trespassense pela volta do TAC, quase sucumbi. Mas ele voltou, está, como tantos outros, que vão, sobem e descem, mas é o que tem de melhor na nossa região. Fico Feliz em ler essa tua narrativa, grande Luiz Garbinato Neto, irmão da minha professora Valdirene. Gostaria muito de poder fazer a história do futebol de 3 Passos,me falta companhia. Para lebrar do Ney, Noly, Cascão, Conceição, Cipó,Lucidio, Celso Sperotto,Branquinho, Rudi, Lebrão, Polaco, Elo, Negrão, Zé, Adão, Cabral, Borbolha, Valandro, Odilon, Carlos Waklavoski, o Garpelé de Jarbas, Ortiz, Dr. Benjmaim. Valeu Garbinato. Um braço. Darci Bindé de Araujo(Bugio)- radio@tertuliaweb.com.br - www.tertuliaweb.com.br(radio na internet) - Três Passos(22/08/09)

Anônimo disse...

OOO DINDO QUERIDO!!Se antes ja sentia orgulho em tê-lo como padrinho, agora então.... sinto-me lisongeada!!!! Foi muito interessante conhecer mais um pedacinho de tua estória. Uma linda estória de um "FUTEBOLISTICO" nato!!(hehehe) Espero que consigas realizar o sonho museu la na minha terra natal! Beijos com muito carinho... Raquel

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Seu Garbinato.
Quanta alegria em ver o pai dos meus amigo Caco e Tito. Nutro um carinho muito grande por voces , até pela história da sua chegada na nossa querida Três Passos. Meu pai Thelmo e minha mãe Olga, estão bem de saúde, que é o que importa, mantenho mesmo que a distância , contato com o Tito, o Caco a mais de 30 anos não o vejo. Fica aqui meu abraço.
Seco