quinta-feira, 10 de abril de 2008

O futebol resumido em duas horas

Do que o futebol é capaz! Que mescla de sentimentos, raiva, emoção, alegria, desilusão, consagração, ele consegue proporcionar. Raras partidas são capazes de resumir tão bem a essência deste esporte de glórias efêmeras ou eternas quanto a de hoje, em Getafe, pela Copa da UEFA. Um duelo de heroísmo, amor, desespero, luta até o final. E um desfecho cruel, de partir o coração dos aficionados, porque disso o futebol também é capaz – e por isso é apaixonante.

A Espanha, dizia-se, estava toda ao lado do Getafe. O azulón da região de Madrid era o derradeiro representante do país no torneio europeu e, sendo um pequeno, não levantando maiores ódios, tinha a simpatia geral. Até o Rei foi ao Coliseum Alfonso Pérez prestigiar o maior duelo da epopéia continental da agremiação. Uma partida contra o colosso Bayern München, dono de equipe capaz de ganhar a Champions League mas que, por uma dessas fatalidades do futebol, foi relegado à segunda divisão da UEFA nesta temporada.

E o jogo prometia. Na Allianz Arena, há uma semana, os espanhóis haviam feito a surpresa ao empatar o confronto em 1-1 com um gol aos 90 minutos de enfrentamento. Hoje, a classificação, que poderia vir ao Getafe até com um empate sem tentos, representaria a história sendo registrada ao grande. Mas não sem sofrimento. Sim, hay que sufrir, como disse o narrador da Cadena COPE durante a transmissão da partida. Hay que sufrir porque, com apenas cinco minutos da partida de hoje, o Getafe já se via com dez homens de campo – num lance de excessiva rigidez arbitral, De La Red foi mandado à rua por falta na entrada da área.

Na saída do gramado, chorou, sinceramente. Sabia o quanto representaria para a sua equipe enfrentar um adversário melhor, em inferioridade numérica desde o início. Mas não sabia os sopros épicos que sua infelicidade daria ao duelo. O drama do Getafe começava ali – o melhor jogo de futebol que se tem notícia neste ano, também.

A dificuldade forçou os azuis a adotarem uma postura defensiva. Em certo ponto, o time da casa aparecia com seus dez remanescentes no campo defensivo, dando chutões para todos os lados. Estar disposto a dar a vida não era um diferencial no maior jogo da história daquele clube – era requisito básico. Foi dando a vida que, diante de um adversário melhor, com um a menos, o Getafe conseguiu sonhar. E fez 1-0. Contra, o herói da partida de Munique, fez fila na zaga alemã para, aos 44 minutos, mandar um tiro indefensável para Oliver Kahn.

Voltando em vantagem ao segundo tempo, o Geta seguiu incrivelmente melhor. Criava boas chances, mas desperdiçava-as sob lamentações. Na melhor delas, viu Braulio escapar livre por entre a marcação rival, driblar o Kahn e, com a meta aberta, escorregar. O pequeno Coliseum pulsava. Eram vozes do país inteiro representados pela acanhada torcida da casa. Toda a Espanha estava ao lado do Getafe, de fato.

Toda a história, no entanto, estava ao lado do Bayern München. Um gigante atrás de uma única oportunidade para se recolocar no duelo pela classificação. A chance, adiada pela sólida retranca espanhola, surgiu na hora crítica. Aos 89 minutos, após os defensores tentarem afastar a bola, ela sobra nos pés de Ribéry, que emenda de primeira, forte, no canto. Abbondanzieri é apenas um boneco tentando parar o inevitável. 1-1.

O Getafe haveria de sofrer, estava anunciado. Foi para a prorrogação. Sempre em inferioridade numérica, sempre duplicando seu fôlego. O tempo extra fazia o confronto ser levado até duas horas, cento e vinte minutos de bola rolando. Ao Getafe, bastaram cento e vinte segundos de prórroga. Dois minutos de loucura para os gols de Casquero – um balaço que bateu na trave antes de entrar – e Braulio – após falha de Lúcio – botarem a vantagem em 3-1.

Não havia mais como perder aquele duelo. De forma inédita e pelo próprio ineditismo, os espanhóis vibravam. Cânticos louvando os cojones da equipe eram entoados nas arquibancadas, bares e ruas, eram escritos em fóruns pela internet, eram narrados pelos locutores mais entusiasmados. As semifinais estavam no bolso de um bravo Getafe que, então, preocupava-se em fazer o tempo passar.

Merecia vencer, o Getafe. Mas o futebol não segue a lógica, não vai pela linha do que se crê ser “justo”. E o jogo mudou. Não mudaria, mas sempre há o imponderável pairando sobre cada campo. E o imponderável baixou sobre o arqueiro Abbondanzieri aos 115 minutos: de muito longe, uma falta do Bayern erguia a bola na área; era um lance fácil para ser encaixado por um goleiro, tivesse ele segurança. O Pato não a teve. Deixou a redonda passar por entre suas pernas e sobrar nos pés do aguçado Luca Toni, que estufou as redes e fez 3-2.

Na Europa, o gol qualificado segue valendo na prorrogação, e um empate àquela altura seria germânico. Sem pernas depois de tanto resistir com dez, sem segurança por um goleiro que falhara na hora em que as falhas deveriam inexistir, o Getafe construiu uma fortaleza quase à prova de gols: mantinha dez jogadores atrás da linha do meio de campo, sete deles dentro da área.

Chegou o minuto final. Os segundos começaram a passar lentamente. Na defesa, o Bayern tinha a bola dominada, para armar o que seria a jogada de sua última esperança em obter a vaga. Podia não ser lance de bola parada, mas lá estava Kahn subindo ao ataque. Não restavam jogadores germânicos no campo defensivo enquanto o lançamento rumava à área. Num primeiro momento, a bola foi rebatida, mas sobrou, com maldade, nos pés de um atleta de Munique. Veio o cruzamento. Veio a saída ruim de Abbondanzieri. Veio a cabeçada de Luca Toni, visando o chão. O esférico quicou, encobriu o arqueiro, subiu e entrou no ângulo esquerdo. 120 minutos, 3-3, e apito final a seguir.

Do que é capaz o futebol! Em um par de lances, todo o trabalho de uma temporada, o sonho de uma existência, foi destruído. O heroísmo se fez presente nas duas equipes – e prevaleceu ao lado da camisa mais pesada. É pouco comum ver um jogo se tornar clássico no minuto seguinte ao seu final. O desta noite, em Getafe, conseguiu. Em duas horas de loucura e paixão, resumiu o mais incrível dos esportes.

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