quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Emocionando corações de pedra

Se as enigmáticas estátuas erguidas sobre a Ilha de Páscoa falassem, além de serem um fenômeno que atrairia milhões de turistas curiosos com os incríveis pedregulhos PARLANTES, seriam umas entediadas sem assunto. Das 887 conhecidas, só sete olham para o mar. Todas os outras, PROVINCIANAS, passaram o tempo inteiro observando o interior da ilha. E os acontecimentos desta definitivamente não bastaram para ENTRETER as estátuas por oito séculos inteiros. Por isso, até elas soltariam uma exclamação de surpresa com o visto ontem pelas bandas de RAPA NUI.

Os moais, como são chamados, foram esculpidos em pedra vulcânica em ALGUM MOMENTO a partir do século XII. Obra de habitantes locais, tão entediados com a vida de ilhéus quanto as próprias estátuas ficariam depois, ou de extraterrestres, segundo teorias criativas das mesmas pessoas que, quando seus times perdem, discursam pelos BOLICHOS sobre um eterno esquema de compra de resultados – e me vê mais um gole de pura que hoje eu quero ESQUECER. Os moais já tiveram pukaos (chapéus) cilíndricos feitos em rocha vermelha e elaborados olhos de coral, mas a maioria foi depredada com o passar do tempo.

Diz a tradição que os primeiros polinésios a habitarem a Ilha de Páscoa (Rapa Nui, no seu idioma) vieram de uma certa Ilha de Hiva. Num momento EPIFÂNICO, o rei de Hiva vislumbrou suas ilhas sendo tragadas pelo mar e todas as famílias morrendo afogadas. Uns milênios mais tarde isso seria atribuído ao degelo das CALOTAS POLARES, mas o pensamento da época se limitava às tempestades. Temendo que o presságio viesse a se tornar real, o monarca escolheu os sete homens que tinham mais cara de centroavantes ROMPEDORES, portanto corajosos, e mandou que zarpassem rumo ao leste. Sempre na direção do sol nascente, haveriam de encontrar uma nova terra. Chegaram a Rapa Nui.

Os sete pioneiros, ainda de acordo com a lenda, são os homenageados com os únicos moais que estendem sua mirada de pedra para o oceano – no sentido da amada Polinésia dos velhos dias ensolarados. Os demais teriam sido esculpidos pelas gerações posteriores, em homenagem a antepassados caídos, e sem terem deixado a ilha não poderiam olhar para fora dela. Então suas caras foram viradas para o lado dos morros, da grama e das palmeiras. Condenados por oito longos séculos a emoções esporádicas. Um colonizadorzinho europeu aqui, umas guerras tribais ali, uma construção recente acolá... Na maior parte do tempo, com justificado enfado, os ilhéus de pedra viam seus PATRÍCIOS de carne fazendo mais moais.

Mas um dia tirar ROSTOS do meio das rochas ficou desinteressante. A influência dos estrangeiros, que outrora destruíam (e na falta de riquezas levavam para casa os próprios moais) e hoje deixam os METAIS dos seus bolsos para conhecer pacificamente (ou quase) a Ilha de Páscoa, levou outro PASSATEMPO à pequena população local. Os rapanuis decidiram jogar futebol. Fundaram uma associação amadora do esporte em meados dos anos 1970 e disputaram duas partidas “oficiais”. Os dois amistosos contra um adversário também amador, representante do vizinho Arquipélago Juan Fernández, acabaram com vitórias incontestáveis. Em 1996, fora de casa, vitória da Ilha de Páscoa por 5 a 3. Quatro anos depois, diante do seu POVO que compareceu ao Estádio de Hanga Roa, o combinado de Rapa Nui impôs violentos DEZESSEIS gols a zero nos seus rivais. No ano de 2003 foi criada a NF-Board, organização com o intuito de reunir as seleções não reconhecidas pela FIFA, e em pouco tempo a Asociación de Fútbol Amateur de la Isla de Pascua passou a figurar em seus quadros.

Nada que provocasse SOBRESSALTOS nos moais. Com possibilidade para tanto, não fariam mais que bocejar. Mas são as desilusões amorosas e as loucuras apaixonadas que movem o mundo, e num dos exemplos desta segunda opção a NOVIDADE invadiu os quase 165 quilômetros quadrados da ilha: Rapa Nui e seu futebol decidiram enfrentar os seus profissionais. Inscreveram-se na Copa Chile, o torneio eliminatório do país, e nessa coisa quase ALQUÍMICA que é a tabela de enfrentamentos de um mata-mata coube à Ilha de Páscoa enfrentar ninguém menos que o poderoso Colo Colo de Santiago. Como um chamado para a guerra, REVERBEROU pelos montes de Rapa Nui uma convocação aos jovens locais. Os bravos e fortes que se alistassem, porque a PÁTRIA (?) precisava deles – “y si vamos perdiendo feo, metemos a los caballos que viven al lado de la cancha y quedamos 15 contra 11”, como disse um habitante dali.

Há um mês foram realizadas as peneiras. Dos quarenta candidatos a “guerreiros rapanui”, dezesseis foram escolhidos para formar o plantel da equipe. Padeiros, músicos, bailarinos (certamente os dribladores mais QUEBRÁVEIS), cozinheiros, um sem fim de profissões foi reunida por baixo da camisa vermelha da Seleção da Ilha de Páscoa. Por uma tarde, jogadores de futebol sob o comando do treinador Miguel Ángel “El Loco” Gamboa, ex-atleta que defendeu o Chile na Copa do Mundo de 1982. Quando desembarcou na ilha, Gamboa encontrou uma loucura que se equiparava à sua, ouvindo repetidas vezes comentários sobre uma possível vitória contra o Colo Colo, e alguns jogadores ousando até PROGNOSTICAR o próximo confronto pela Copa. Enquanto tratava de SITUAR seus colegas no universo futebolístico, o técnico dizia aos periódicos: “Es un fútbol ingenuo”.

Edgardo Pastén Hito, de 27 anos, goleador histórico do futebol pasquense (só no ano passado foi às redes quarenta vezes em jogos internos), preferia seguir outro caminho: “Qué bueno que un equipo prefesional del continente por fin se atreve a jugar contra nosotros. Acá sólo pensamos en ganar. Nunca hemos perdido contra un equipo de Chile.” E nunca haviam vencido, já que sem confrontos diante dos continentais, mas isso não vinha ao caso. Para fazer realidade a partir dos pensamentos, a única chance do quadro de Rapa Nui era derrotar os oponentes na força: “Quizás no tenemos la técnica de Colo Colo, pero físicamente somos superiores. Somos así por naturaleza”, assegurou Jovino Tuki, volantão da equipe cuja média de altura superava o um metro e oitenta.



Sobre a aua piroto[1], calçando seus kirevaes[2] e antes de dar o primeiro chute no piroto[3], o elenco da Ilha de Páscoa fez uma performance do HOKO, uma dança ritualística semelhante à Haka, eternizada pela Seleção Neozelandesa de RUGBY. Assim como os maoris eram uma lembrança de quem já se fora, o Hoko também evocava os antepassados. Diante da batalha iminente, encarados por jogadores do Colo Colo que não entendiam bem o que se passava, honravam os ancestrais e pediam força. Sentados nas arquibancadas montadas especialmente para o encontro ou no chão mesmo, mais de três mil espectadores compunham possivelmente o maior público proporcional da história do futebol – o equivalente a dois terços da população TOTAL da ilha (4,5 mil pessoas) se encontrava no Estádio Hanga Roa. Pouco depois das seis da tarde, hora local, o tangata puhi[4] Carlos Chandía deu início ao pere[5], televisionado para todo o país.

A Seleção de Rapa Nui chegou a marcar um gol. Daqueles que por mais ilegal que seja os DEUSES DO FUTEBOL aceitam. Chandía, um HEREGE, anulou. Com meia hora de partida a resistência cessou. Javier Pérez marcou contra a ao seu gol desafortunado seguiram-se mais três pelotas enfiadas nas redes pelo Cacique de Santiago. O Ilha de Páscoa 0 a 4 Colo Colo foi uma goleada óbvia, sem decepção e, consideradas as circunstâncias, bastante AMENA. Celebrou-se o futebol naquele estádio repleto. A população se distraía com o embate e os maoris, arrancados da mesmice habitual, regozijaram-se em segredo. Pelos cantos de Rapa Nui, assustados turistas constataram que as estátuas tinham um sorriso jamais visto nos postais.

[1] campo
[2] chuteiras
[3] bola
[4] juiz
[5] jogo

Fotos: José Arcos, site oficial do Colo Colo.

Um comentário:

Zobaran disse...

muito gênio

"Nunca hemos perdido contra un equipo de Chile"