terça-feira, 3 de março de 2009

Meu último jogo “em casa”

Raciocinemos com números. Catorze anos de frequência no 19 de Outubro. Algumas centenas de jogos. Duas temporadas de Segundona, doze de Gauchão, e perto de dez copinhas pouco valiosas de segundo semestre. Quatro amistosos em casa por ano, em média. Três jogos contra a Dupla Gre-Nal que eu lembro de ter visto. Dois exímios cobradores de faltas, Chiquinho e Paulo Gaúcho. Só um clássico. São Luiz e Santo Ângelo, o clássico da minha infância.

Não poderia haver jogo melhor que este para marcar a despedida do 19 de Outubro como meu lar futebolístico. Se eu fosse um egocêntrico... ou melhor: se eu fosse MAIS egocêntrico, diria que o São Luiz esperou a minha saída de Ijuhy para marcar o jogo especial que foi este amistoso da segunda-feira. Em 2003 o São Luiz caiu à Segundona; em 2004 foi o Santo Ângelo; em 2005 ambos se enfrentaram quatro vezes, incluindo o jogo do acesso ijuiense, o São subiu, o Santo ficou, e cada um seguiu o seu rumo. Sem enfrentamentos. Ontem, jogaram.

Mazarópi disse em Coronel Barros: haveria um amistoso contra o TAC, de Três Passos, e a direção estava tentando agendar mais uma partida. O jornal santoangelense A Tribuna apontara, antes, que esse jogo poderia ser contra o São Luiz. Erraram a data, acertaram o adversário, e o amistoso que anunciaram para o dia 26 terminou acontecendo ontem, 2 de março. Maravilhosamente. O meu clássico na minha despedida. Mas a chuva, ingrediente de inestimável valor nas jornadas mais épicas do futebol, desta vez parecia querer ser minha inimiga, estragando tudo, dizendo que eu não merecia uma partida dessas, que eu deveria ir embora sem um jogo derradeiro e, encharcando o gramado, fez o São Luiz lançar uma nota oficial no início da tarde, cancelando o amistoso.

Um estrondoso de um lamento. Logo a chuva pela qual tantas vezes pedi nas partidas do São Luiz, logo ela me traindo. Ainda dentro do espírito do jogo, tendo que conviver com a sua desmarcação repentina, gastei as minhas horas repassando partes da minha trajetória são-luizense. As primeiras tardes, em que ia ao 19 de Outubro levado pelo meu pai, muito mais para quebrar cascas de amendoim no concreto do estádio do que para ver a partida. Era 1995, em campo estava possivelmente o melhor São Luiz da história, certamente o São Luiz de melhor campanha na história, e eu lá, de costas para o jogo, quebrando cascas de amendoim.

Era legal, o que se vai fazer? Nessa época, em que pela distância a que eu ficava do campo, os jogadores pareciam ser todos mudos, também coloquei dentro de um tijolo atrás das cadeiras um resto de embalagem de garrafa de Pepsi. Passaram-se dias, meses e anos e o resto da embalagem da Pepsi (foto ao lado) continua lá. É um símbolo de um monte de coisas que eu não lembro agora, mas inclui a ecologia (veja como demora para essa droga se decompor!) e a escatologia (onde estão os responsáveis pela limpeza desse estádio?). Principalmente: retrata uma era em que garrafas plásticas não eram vistas como armas letais e entravam livremente no estádio. Filhos de um tempo em que os mais inocentes objetos são banidos por causar perda de mando de campo se arremessadas no terreno de jogo, os jovens do futuro têm naquele resto de plástico uma prova concreta de que nem sempre se julgou que garrafinhas pet poderiam DECAPITAR alguém.

Se o São Luiz de 1995 deve ter sido o melhor, atingindo as semifinais do Gauchão daquele ano (e sendo impiedosamente SURRADO pelo futuro vice-campeão Inter, que o eliminou com um agregado de 9 a 2), quem ganhou os títulos foram os times dos anos seguintes. Em 1997 as vitrines receberam a então-valorizada-e-hoje-totalmente-esquecida Copa Galego, cujos jogos eu devo ter visto sem saber por que valiam, e em 1999 o time ergueu a Copa Mais Fácil, que foi bem divertida apesar do nome lastimável. Divertida em grande parte porque esta sim eu vivi conscientemente, e pude festejar a conquista após uma vitória de virada sobre o próprio Santo Ângelo, um jogo que eu já sabia ser clássico.

O maior dos clássicos. Gre-Nal? O que era um Gre-Nal comparado a um São Luiz e SER Santo Ângelo? A verdade é que o grande duelo regional era do São Luiz contra algum time de Cruz Alta que estivesse bem, normalmente o Guarany, mas esse não foi do meu tempo. Quando eu comecei a acompanhar o esporte para valer, o futebol cruzaltense já tinha decaído como o Uruguai, e quem estava surgindo no cenário estadual era a SER Santo Ângelo, clube originado da fusão de muitos times santoangelenses em 1989. Clássicos brigados, clássicos em que se tirava sangue do adversário, clássicos decididos no detalhe, clássicos com uma leve predominância do São Luiz. Clássicos maiores que o Gre-Nal, porque aconteciam na minha frente.

Uma lembrança meio cegada pelo saudosismo, com certeza, e talvez por eu ter tardado a despertar para o futebol televisivo, mas aqueles tempos de inexistência total de pay-per-view pareciam ser muito mais propícios ao surgimento de uma paixão pelo clube citadino. A soma das poucas partidas de Gre e Nal na tevê com os Gauchões de então, muito mais longos, e as copas interioranas bem mais peleadas que as vazias de hoje (ainda que na época não classificassem para PORRA NENHUMA, nem uma Sériecezinha) tornavam a experiência de viver o São Luiz e os outros clubes pequenos algo muito mais gratificante. E nem precisavam fazer campanhazinhas como a Anti Gre-Nal que surgiu nesta década.

O encerramento desse ciclo pró-interior, na alvorada dos anos 2000, coincidiu com a decadência do São Luiz. Não que uma coisa tenha relação com a outra: a piora são-luizense foi culpa da INCOMPETÊNCIA de direções que tiveram tudo nas mãos e só fizeram se endividar. Pois o São Luiz caiu em 2003. Em 2004 foi a vez do Santo Ângelo, aquela história. O que interessa é que o São Luiz subiu em 2005, num dos velhos clássicos (à esquerda, Mainardi comemora o segundo gol são-luizense no Santo Ângelo 1-2 São Luiz de 24/07/05, o jogo do acesso), e os jogos entre ambos rarearam. Escapa-me da memória se houve algum amistoso desde então, mas é certo que se aconteceu eu não presenciei. O São Luiz vem tentando se firmar, em 2008 não brigou contra o rebaixamento pela primeira vez em muitos anos, e em 2009 está seguindo caminho semelhante. O Santo Ângelo, pelo contrário, encontrou mais e mais dificuldades. No ano passado abriu mão da disputa da Segundona, por falta de condições financeiras, e agora tenta retornar.Ambos, cada um com os seus objetivos, terão um reinício no fim de semana. O São Luiz começando o segundo turno do Gauchão, o Santo Ângelo abrindo a Segundona. Por isso o amistoso de ontem. A chuva provocou as minhas reminiscências querendo anular a partida, mas em determinado momento da tarde as nuvens foram sopradas por ventos celestiais e o horizonte se abriu misteriosamente. Novamente, se eu fosse MAIS egocêntrico diria que era um prêmio do Monstro de Espaguete Voador ao infeliz que mais fez literatura (?) sobre o São Luiz nos últimos tempos. Corneteando o Maurício, é verdade – mas eu tinha razão, o centroavante acabou dispensado no intervalo entre os turnos. Ainda bem que estou indo para Santa Maria quarta-feira, pois não saberia o que fazer da vida se ficasse em Ijuí e não tivesse o Maurício para criticar nos meus textos.



Algumas horas depois, noticiava-se o que eu suspeitei desde o fim do aguaceiro: “Sai o jogo! Sai o jogo!” Sairia o meu último clássico como ijuiense. Continuarei vindo ao 19 de Outubro, neste mês mesmo, creio, mas aí será diferente. Terei que viajar para ver a partida, não será a partidinha habitual de fim ou meio de semana, saindo de casa e voltando em dez minutos. Ontem foi a última vez que vi um jogo assim. Para sempre, por alguns anos, por muitos anos, não sei, mas foi a última por enquanto, e é o que interessa. O São Luiz terminou a noite vencendo bem, por 2 a 0, gols de Juninho Petrolina (numa magistral cobrança de falta que fez lembrar Paulo Gaúcho e Chiquinho) aos 4 minutos, e Ronaldo Capixaba, aos 51 (este, no vídeo acima). O time do Santo Ângelo pressionou um pouco, mas foi inferior sempre. Está longe da forma ideal para entrar na divisão inferior almejando um acesso.

Mas quando os refletores se apagavam, a minha última jornada findava, o que ficou na mente não foi o jogo do dia, o golaço do Petrolina ou as façanhas do passado. Foi a anomalia vista nos uniformes dos times. Em pleno 19 de Outubro, o São Luiz entrou em campo vestido de Santo Ângelo e o Santo Ângelo pisou no gramado vestido de São Luiz. Isto é: o São Luiz de branco e o Santo Ângelo de vermelho, invertendo toda a história, toda a tradição, escrevendo o mais triste capítulo dessa picuinha gremista que causou a mudança do uniforme oficial são-luizense. Os principais rivais do São Luiz vestindo as cores do São Luiz EM IJUÍ configuraram o maior absurdo futebolístico desde que o Íbis venceu o Náutico nos Aflitos em 2000. Um choque grande demais. No fim das contas, será bom mudar de ares.

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