O jogo não foi dos piores, especialmente para o lado croata. Depois de começar a partida levemente dominados pela Turquia, os de azul-e-xadrez responderam mandando um pelotaço no travessão adversário, aos 15 minutos. Era o primeiro alerta. Dali em diante, houvesse resistência turca, as melhores oportunidades se acumularam pelo lado do quadro dos Bálcãs. Foram defesas milagrosas do grande arqueiro Rüştü (que substituía Volkan Demirel, expulso na lendária última partida da primeira fase), bolas tiradas de dentro da pequena área, e outros tantos lances que só um time com maior volume poderia criar.
O jogo, no entanto, também não foi dos melhores, especialmente para o lado croata. Porque se havia criação, havia displicência, e não vinha a confirmação. A Croácia mantinha os onze turcos como boxeadores acossados contra as cordas, mas não tinha força suficiente para nocauteá-los. O apito final dos noventa minutos soou com o 0-0 ainda luzindo no marcador do estádio Ernst Happel em Viena. A Turquia iniciou a prorrogação melhor, levou perigo em dois ou três chutes mais oportunistas, sem, contudo, provocar uma movimentação na contagem. Ficou enojante todo aquele desperdício. Duas horas de futebol com placar nulo não seriam redimidas por nada, com exceção de um gol.
Ele nasceu aos 119 minutos, como convém em partidas que começam a irritar: depois de tanta agonia à espera de emoção, a iminência dos pênaltis parece adoçar tudo, e então vai lá um estraga-prazeres para meter um tento salvador, redentor – e terrível para os neutros que tiveram que agüentar tudo aquilo. O estraga-prazeres foi Klasnić, aproveitando-se de uma desastrosa saída de gol de Rüştü para meter 1-0 com a cabeça. A loucura tomou conta da parte balcânica do estádio. O treinador croata corria sem rumo, vibrando como se ele fosse o autor do tento, os reservas do banco erguiam as mãos para o céu, e os jogadores dentro das quatro linhas se congratulavam – iriam às semifinais.
Nessa hora, eu disse: “a Turquia vai empatar”. Não sou bom na vidência, e a natureza parece querer desmentir cada palpite que dou durante as partidas (um dos problemas do egocentrismo), criando jogadas totalmente contrárias àquelas convenientes para as minhas afirmações. Mas a Turquia, a Turquia das vitórias espetaculares com gol no último minuto contra a Suíça e República Tcheca na seqüência, aquela Turquia não merecia provar do seu próprio veneno. Ela tem espírito. Eu não sabia e talvez até duvidasse inconscientemente que ela empataria, mas tinha absoluta certeza de que estaria viva até o apito final despencar sobre sua cabeça como a lâmina de uma guilhotina.
E a Turquia viveu. Não se vê todos os dias um time voltar das cinzas numa prorrogação depois de sofrer um gol aos 119. O juiz pediu apenas um minuto de acréscimo, tempo consumido em agônicas investidas. Extrapolado em alguns míseros segundos quando, enfim, os turcos chegaram à área e o camisa 9 Semih Şentürk mandou um balaço por entre dois zagueiros para acertar o ângulo de Pletikosa. O 1-1 veio, oficialmente, aos 120+2 minutos, silenciando uma festa que se iniciava. Extraordinário. Os croatas reclamaram: não aceitavam que o juiz tivesse concedido aquelas voltinhas extras do segundeiro para o último ataque. Em instantes, deixaram de tocar o céu para despencar às profundezas do inferno.
Diante da névoa espessa a baixar sobre seus sonhos cristalinos, a Croácia ficou arrasada, perdeu confiança e moral, qualidades essenciais para os pênaltis. Três erros (o último, numa consagradora defesa de Rüştü) em quatro tiros resumem a tragédia. A Turquia, dopada naturalmente pelo êxtase, não perdeu nenhum dos que teve direito. Não poderia perder depois de uma recuperação daquelas. Com espírito, uma vez mais, 1-3 desde os onze metros, vaga nas semifinais.
Era uma vez a Croácia, sensação européia que vencia os melhores times do continente. A Turquia segue. Jogará contra a poderosa Alemanha, jogará com vários desfalques, jogará com o cansaço de um dia e uma prorrogação a mais que os germânicos. Jogará contra todas as apostas e probabilidades, novamente. Quem sabe agora caia. Não importa: se cair, o fará lutando. Com a garantia de que os feitos desse time de 2008 já conquistaram a imortalidade na memória do futebol turco.
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