segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Saltar no vazio

Sabe o sentimento que se tem de presenciar algo que a vida não repetirá tão facilmente? O gol do Grêmio, ontem, foi um desses momentos. Nem vi a tímida celebração dos atletas tricolores porque tinha a certeza de que ela era banal. Maracanazos há dois por ano. Outro deles não seria novidade e, pelas circunstâncias da rodada, nem digno de grandes festejos. Fazer um Beira-Rio inteiro comemorar um gol gremista, esse era o valor daquele tento hipócrita. E os colorados vibraram sem pudores. Naquela PULGA de tempo em meio à história da humanidade, naqueles segundos posteriores ao gol de algum tricolor desimportante, foi como se a parte alvirrubra do Rio Grande estivesse dentro de um avião que recém decolara.

Porque muito mais difícil do que silenciar um Maracanã lotado era acreditar que o Grêmio, o Grêmio cheio de reservas, o Grêmio que poupou seus principais nomes sem motivo aparente, o Grêmio que parecia ter afirmado tão claramente que iria sim entregar, o Grêmio que mesmo querendo jogar para vencer dificilmente chegaria a tanto, pois tinha uma campanha tenebrosa como visitante, que esse Grêmio fosse fazer frente ao Flamengo. Subvertendo a lógica do futebol, aquela de respeitar seus torcedores, os atletas do time de três cores de Porto Alegre entraram em campo dispostos a defender sua HONRA PESSOAL e ignoraram os clamores de milhões. Queriam vencer, os loucos.

O gol colorado sobre o Santo André, marcado menos de dois minutos depois do 0 a 1 gremista no Rio de Janeiro, o gol que inverteu o topo da classificação brasileira e então dava o título ao Inter, foi o aviãozinho dos vermelhos e brancos ultrapassando as nuvens mais elevadas da atmosfera. A expectativa por uma taça-que-se-pode-ganhar-mas-dificilmente-deve-vir é a ciência de conter os hormônios, enzimas e fluídos que formam as aspirações. O coração quer sonhar e idealizar como será bom se tudo for feito, mas o cérebro vem com a razão irritante e avisa que o melhor é esquecer essa história, porque as chances são pequenas e haverá mais dor no caso da desilusão quase certa vir.Por isso, a alma exigida pelos colorados e seguida pelos jogadores do Grêmio doeu nos vermelhos ainda mais do que uma entregada óbvia e natural. Ao tomar nota da correria, da briga, das defesaças de um Marcelo Grohe que passara o ano falhando, da autêntica raça para recuperar bolas perdidas exibida pelos gremistas, os colorados acreditaram estar diante da possibilidade real e recuperada de se entronarem campeões brasileiros. As sensações reprimidas pela racionalidade durante a semana, nos minutos em que o Grêmio vencia e o Inter já ia abrindo não só um, mas dois a zero, foram liberadas com a mesma intensidade que a adrenalina corre nas TUBULAÇÕES corporais de um paraquedista que se joga no vazio.

Acima das nuvens, da chuva, do bem e do mal, entre quase realizados e ainda sonhadores, cada colorado do mundo se atirou do avião que decolara quando dos gols do início da rodada. Tinham nos lábios um pouco do sabor da realização, e se dispuseram a correr o risco para senti-lo por mais tempo. Enquanto despencavam no ar, sem medo, com o chão se aproximando mais e mais, foram definindo que lá embaixo não estavam flores, mas areia e pedras.

O Grêmio não podia vencer. O Flamengo entrou em campo nervoso e desatento, quiçá pelo já ganhou, e fez uma das piores partidas desde que começou a reagir no campeonato. Sua apresentação ontem fez pensar que o Brasileirão de 2009 estaria coroando o pior vencedor da era dos pontos corridos, fosse quem fosse. O Fla errou muito. Adriano, de imperador, passou a engraxate das sandálias de um legionário de terceira classe de Roma. Ironicamente, foi com uma falta ofensiva dele que a zaga gremista ficou sem ação e o Fla pôde empatar no primeiro tempo, golpeando pela primeira vez os colorados. Os rubro-negros remontariam aos 69 minutos, quando Grohe desistiu de fazer a melhor partida da sua vida e voltou a procurar LEPIDÓPTEROS numa cobrança de escanteio, saindo mal na cabeçada goleadora de Angelim.

O 2 a 1 foi, para os colorados que ainda vinham inebriados na direção do solo, aquele átimo em que a euforia passa e a mente se ocupa de nada. No meio do ar, com o time goleando, recobravam agora a memória da comemoração de pouco antes e se questionavam: “o que estamos fazendo aqui?”. Depois daquilo, o Flamengo não correu mais riscos de perder o título. Ouço agora que o Grêmio foi digno, calou os que afirmavam que entregaria e jogou com força até o fim. Discordo. O Grêmio realmente fez mais do que se esperava dele, mas nitidamente freou seu próprio ânimo.

Ao mistão gremista faltou seriedade e ofensividade no segundo tempo. Não sendo o Inter o segundo colocado, os gols sairiam e o Maracanazo versão 118 teria se concretizado – ou não, mas o Flamengo teria sido obrigado a realmente jogar futebol para assegurar a taça, e não aquele pouco que mostrou ontem. Sutilmente, aos pouquinhos, o Roberson foi deixando de chutar. O Léo foi evitando brigar. O Fábio Santos foi preferindo dar passes para trás quando tinha corredores à sua frente. O Thiego foi errando passes infantis na defesa. Num campeonato marcado pela falta de vontade dos seus participantes em vencê-lo, o Flamengo fez tão pouco na última rodada que obrigou o Grêmio a terminar a partida patético, para conseguir perdê-la.
O jogo do Inter encerrou-se quando ainda restavam dois minutos no Rio. O Grêmio tinha a bola no ataque e só não buscava o gol pela situação da tabela. Os colorados já sabiam que aqueles ali não mereciam mais sua fé. O apito final de Héber Roberto Lopes coincidiu com o momento em que os paraquedistas encostaram os pés na terra. Um pouso sem traumas, pois com vaga na Libertadores. No entanto, com aquela frustração de chance perdida. Uma oportunidade que poderia ter sido melhor aproveitada. Apesar disso, sabem, e o passado já demonstrou, que mais piruetas podem ser dadas - e em paisagens mais interessantes. Olhando para o avião parado no fim da tarde, os saltadores alvirrubros imaginavam os pulos de 2010, agora sobre a América do Sul.

* * *

Comentários aleatórios sobre o resto da rodada:

- Estamos todos aliviados com o fim da hegemonia são-paulina.

- Recuperação fantástica do Cruzeiro e refugada épica do Palmeiras. Ninguém contrata Muricy para acabar em quinto lugar, dizia o presidente alviverde. Pois é.

- O Fluminense pode até com azeitonas murchas. Continuam precisando pagar a Série B, mas a ressurreição nesta temporada mereceu respeito.

- Interdição do Couto Pereira até que o estádio se torne um local minimamente seguro ou implosão e construção de uma nova cancha. É o mínimo que se pode exigir depois da batalha medieval de ontem. A julgar pelas deficiências do estádio do Coxa, a segunda opção pode até ser mais barata.

Fotos minhas.

Um comentário:

luís felipe disse...

absolutamente perfeito. Texto histórico. Descreveu exatamente o que houve. Parabéns.