terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Perpétuo até o fim da semana (3): Joaquín Boghossian

Vas a ver que lindo cuando allá en la cancha
Mis goles aplaudan; seré un triunfador
Jugaré en la quinta, después en primera;
Yo sé que me espera la consagración.

Joaquín Boghossian contempla o mundo e todas as coisas do topo de pernas que o elevam a quase dois metros do chão. Fora a altura e a origem armena, até poucos meses atrás não tinha muito que lhe diferenciasse de outros jovens que jogam o futuro nas canchas de futebol do sul da América. Em seus armários, guardava camisas das duas pérolas clubísticas sem destaque que defendera em sua Montevidéu natal: o Club Atlético Cerro e o Club Atlético Progreso.

O atacante de vinte e dois anos debutou nos gramados aos portões da maioridade. Em 2005, vestiu pela primeira vez num jogo profissional a camisa dos Villeros do Monumental Luis Tróccoli. Um ano depois, passou aos anarquistas do Progreso de Parque Paladino, para em 2007 retornar ao clube de origem e também ser chamado para a Seleção Uruguaia Sub-20. Suas idas e vindas não devem ter repercutido muito além das rodas de torcedores de cada equipe. Montevidéu tem clubes demais, e Cerro e Progreso não são exatamente os mais populares ou vitoriosos.

Até o ano passado, os times de Boghossian viam motivos para celebrar se conseguissem passar do décimo lugar na classificação geral de um Apertura ou Clausura. Mesmo com as convocações nacionais, ele era mais um na multidão de atletas. E a multidão era das maiores, repleta de jovens que jogavam pouco – em quantidade de minutos ou em qualidade de futebol. É nesse ponto que os dias do uruguaio Bogho começam a parecer o tango dos argentinos Juan Puey e Reinaldo Yiso. El sueño del pibe, que tem alguns versos abrindo este texto, conta a história de um menino chamado para jogar no grande clube de futebol local, seguro de seu destino e dono de um diferencial: dicen los muchachos de Oeste Argentino / que tengo más tiro que el gran Bernabé.

O grande Bernabé Ferreyra, el Mortero de Rufino, se aposentara havia pouco na época em que a música foi escrita, em 1943, e já se convertera num dos maiores goleadores do futebol até ali. Ser capaz de chutar melhor que o atacante nascido na província de Santa Fé era honra para pouquíssimos. Profissionalmente, Bernabé jogou entre 1931 e 1939, quando os pataços inimigos encerraram sua carreira aos trinta anos, e balançou as redes mais vezes do que entrou em campo: 206 gols em 198 partidas, a maior parte pelo River Plate. Seus canhonaços pareciam tão imparáveis que a certa altura um periódico portenho ofereceu uma medalha de ouro para os goleiros que não fossem vencidos por Bernabé – apenas De Nicola, do Huracán, e Sangiovanni, do Independiente, terminaram o campeonato condecorados.

Como o menino do tango, o jovem Boghossian também ouvia dos companheiros e amigos que tinha más tiro do que muitos dos consagrados pelos clubes grandes. E em 2009 deu razão a eles. O Cerro, 86 anos passados desde a fundação e nenhum título relevante na conta, ergueu sua primeira taça de alto nível numa temporada em que Joaquín Boghossian resolveu emendar jornadas goleadoras. Marcou nove gols no Clausura, saiu vice-artilheiro e contribuiu decisivamente para botar o Cerro entre os seis melhores da classificação geral do Campeonato Uruguaio. A participação na Liguilla transformou-se em título com quatro vitórias em cinco jogos, e mais três gols de Bogho.

Os vileiros tocavam o céu. Uma taça e uma vaga na Copa Libertadores de 2010, quinze anos depois da sua última e única participação no torneio, em 1995. E o pistoleiro resolveu sair. De repente, com a promessa de idolatria eterna no Luis Tróccoli e podendo figurar na maior vitrine da América no próximo ano, Boghossian cruzou o charco e foi parar em solo argentino. Voltou a ser apenas mais um. Outro uruguaio que atravessava o Rio da Prata. O enésimo que vinha de clubes pequenos tentando criar nome num campeonato mais competitivo. Boghossian chegou a Rosário sem alarde, vestiu a camisa vermelha e negra do Newell’s Old Boys e teve sua sanidade questionada. Quem jogaria fora desse jeito a garantia de disputar a Libertadores do ano que vem?

Vale la pena el desafío – respondeu. Talvez Boghossian seja mesmo parecido com o menino do tango e saiba que lhe espera a consagração. Numa noite em fins de outubro, os que ainda resistiam a acreditar em seu nome viram o oriental de ascendência armena cravar dois gols nas redes do Vélez Sarsfield e estremecer o travessão com um tirambaço. Em pleno Amalfitani. O incógnito delantero das semanas anteriores era agora o centro do ataque, a esperança de gols e a vertente da ilusão do título nacional, que não se cogitava naqueles dias em que o início do Apertura foi adiado pelas dívidas dos clubes e pelas indefinições quanto à transmissão dos jogos. As arquibancadas do rosarino Coloso del Parque passaram a bradar: ¡Uruguayo! ¡Uruguayo!

O desafio ao qual esse uruguayo se prestou, abrir mão de jogar a Libertadores no seu Cerro e pelear por uma vaga com o novo clube, ficou cada vez mais realizável. Boghossian marcou gol até no clássico contra o Central, ajudando a transformar em 2 a 2 um jogo que estava sendo perdido por 0 a 2, e seguiu firme perseguindo o Banfield, líder invicto do Campeonato Argentino. Domingo, El Taladro caiu em casa para o Racing de Avellaneda, abrindo caminho para os Leprosos. Os rubro-negros de Rosário, porém, precisavam quebrar uma escrita nesta segunda-feira: bater o Colón em Santa Fé, algo que não acontecia há onze anos.

Faltando un minuto, están cero a cero
Tomó la pelota, sereno en su acción
Gambeteando a todos, se enfrentó al arquero
Y con un fuerte tiro quebró el marcador

A última estrofe da canção de Puey e Yiso só errou o tempo de jogo. Eram 65 de partida, faltava muito mais que um minuto. Mas estavam em zero a zero. E Boghossian ganhou a bola com a serenidade dos que sabem o que fazer. Não estava sozinho naquele pedaço do Cementerio de Elefantes. Além dos olhos do país sobre si, tinha a companhia de três marcadores. Gambeteou-lhes todos. Mirou o goleiro. E atirou baixo, raspando a relva com força, fazendo o 0 a 1 definitivo da noite de segunda-feira. O Newell’s Old Boys é líder do Apertura. Boghossian é artilheiro do time com nove gols. Está a ponto de alcançar a proeza de classificar, no mesmo ano, dois times diferentes para a Libertadores da temporada seguinte – e tem três rodadas para sustentar a posição atual e gritar que é, também, campeão da Argentina.


* A vitória do Newell’s e o gol de Boghossian só vieram na segunda-feira, mas diante de tudo isso não vale a pena se prender à burocracia de considerar que a “semana anterior” dessa série deveria acabar no domingo.
** Só postado agora por problemas de internet.

Foto: Olé.

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