domingo, 6 de dezembro de 2009

Falta a Hungria

Os húngaros festejam um gol contra Uruguai na Copa de 1954

É da Hungria que talvez tenha saído o primeiro clube da história a ser considerado o melhor do mundo. Nos anos 1950, antes dos torneios continentais oficiais, o Honvéd de Budapeste encantava a GENERALIDADE PLANETÁRIA. Suas linhas contavam com quatro dos nomes mais clássicos da inolvidável Seleção Húngara daqueles tempos: Ferenc Puskas, Sandor Kocsis, Jozsef Bozsik e Zoltán Czibor. Dos sete campeonatos nacionais disputados entre 1949 e 1955, o Honvéd venceu cinco - e jamais havia ganho a taça antes. Excursionava pelos continentes e lhe agradava triturar seus adversários, como o Santos de Pelé faria na década seguinte.

O Honvéd era o time do exército. Como sempre nos clubes de trás da cortina de ferro, uma fachada. Puskas foi apelidado Major Galopante exatamente pelo cargo que “ocupava” nas forças armadas. Seus companheiros, igualmente, eram todos oficiais que não sabiam bater continência. O suposto secundarismo do futebol na vida de cada um permitia que os países do Leste Europeu considerassem seus atletas de ponta como amadores, podendo inscrevê-los nas seleções que viajavam para as Olimpíadas. A Hungria iniciou o amplo domínio da região sobre os pódios olímpicos ganhando o ouro em 1952.

Apelidados Magiares Mágicos, os atletas húngaros seriam ainda os primeiros a derrotar a União Soviética em solo russo, e a triunfar sobre a Inglaterra em Wembley. Venceriam o Campeonato da Europa Central em 1953, e jogariam o melhor futebol da Copa do Mundo do ano seguinte. Aquela Hungria foi a experiência primária do que a Holanda viria a apresentar como Futebol Total, e trouxe ao esporte a novidade do aquecimento. Daí que raramente não estava vencendo seus jogos por 2 a 0 antes do décimo minuto. Parecia feitiçaria ou genialidade, mas nada mais era do que a versão rudimentar dos exercícios feitos hoje por todos os times do mundo antes de entrar em campo.

Aquela fantástica formação húngara acabou em 1956, com o fim do próprio Honvéd. Do grande Honvéd. Em outubro, uma revolta popular questionou o regime comunista no país. Imre Nagy, líder liberal, tomou o poder e retirou a Hungria do Pacto de Varsóvia. No mês seguinte, quando a União Soviética respondeu estraçalhando Budapeste com seus tanques, esmagando os democratas e enforcando Nagy, o Honvéd excursionava pela Europa. Na mesma noite, o time disputaria um amistoso na Suíça. Depois daquilo, a incerteza. Porque os jogadores não queriam voltar para a repressão. Além disso, estavam insatisfeitos com o risível prêmio por jogo pago pelo clube – uma parcela infinitesimal da fortuna que o Honvéd cobrava por cada amistoso no exterior –, e com a impossibilidade de se transferir.

Gyula Grosics, goleiro do time e da seleção, por exemplo, nunca conseguiu realizar seu sonho por causa disso. Torcedor do Ferencváros desde a infância, suas tentativas de jogar no clube de coração sempre esbarravam nas proibições impostas pelo regime: não lhe deixavam assinar contrato com eles. Grosics eventualmente sairia do Honvéd, mas só pôde ir para o Tatabánya. Ficou lá até 1962, quando encerrou a carreira aos 36 anos, depois de ouvir mais uma negativa ao tentar ir para a equipe de sua paixão. Em 2008, com 82 anos, Grosics tornou-se o mais realizado dos homens, e também o ser mais velho do mundo a participar de uma partida de futebol: jogou o primeiro minuto do amistoso do seu Ferencváros contra o inglês Sheffield United. Um único minuto – e depois daquilo, o clube aposentou a camisa 1 em sua homenagem.

Mas em fins de 1956 ele era do Honvéd. E o Honvéd era de um país mergulhado na escuridão do totalitarismo que voltava. Reunidos com o empresário da equipe, os jogadores tomaram a decisão: não regressariam mais à pátria. Tornaram-se refugiados. O jogo de volta da primeira fase da Copa dos Campeões da Europa, contra o Athletic de Bilbao, foi mandado pelo Honvéd no estádio Heysel, de Bruxelas. O time havia sido derrotado por 3 a 2 em solo basco, e foi vitimado pelo azar: perdeu o goleiro por contusão logo no início da partida. Sem substituições permitidas, os húngaros tiveram que jogar com dez o resto do tempo – e com o ofensivo Zoltán Czibor no arco. Ainda assim, empataram por 3 a 3. Insuficiente para passar de fase.

Jogado no limbo por conta da eliminação, o Honvéd flertou com a romântica ideia de passar o resto dos seus dias atuando nos campos do Oeste do Mundo. O treinador Béla Guttmann marcou amistosos na Itália, Espanha e Portugal. O México ofereceu asilo político ao Honvéd e um lugar no seu campeonato nacional, mas o time preferiu vir ao Brasil – onde fez cinco partidas contra Flamengo, Botafogo, e um combinado mesclando peças desses dois. Nessa altura a FIFA já havia declarado o time ilegal, e ameaçava banir de seus quadros quem ousasse jogar diante deles. O Honvéd ficou sem saída.

Alguns jogadores, como Grosics, aceitariam regressar ao país natal. Outros, em especial os craques Czibor, Kocsis e Puskas, exilaram-se na Europa Ocidental. A FIFA suspendeu-os por um ano. Cumpriram a pena. Em 1958, Czibor e Kocsis estrearam no Barcelona. Puskas, no Real Madrid. Guttmann, que só treinou o time naquele pôr-do-sol vivido em 1957, merece nota pelo que fez depois: no mesmo ano foi para o São Paulo, onde conquistou o Campeonato Paulista; mais tarde levaria o Benfica ao bicampeonato europeu em 1961 e 1962; e ainda teria uma passagem pelo Peñarol de Montevidéu.

A Seleção Húngara nunca mais foi a mesma sem os seus heróis dos anos 50. A última vez em que passou da primeira fase numa Copa do Mundo foi em 1966 - provando que seus derradeiros resquícios de bom futebol haviam sido deixados para essa época, voltou a ganhar o ouro olímpico duas vezes, em 1964 e 1968. Já a última participação em Copas do Mundo data de 1986. E não bastasse inventar uma REVOLUÇÃO DE VERDADE para destruir o Honvéd e a magia dos magiares, a história sempre brincou com o futebol da Hungria usando altas doses de sadismo. No período em que durou a equipe mítica, de 1950 a 1956, o selecionado disputou exatos 50 jogos, marcando 215 gols – venceu 42 e empatou 7. Perdeu apenas um. O maior de todos: a final da Copa do Mundo de 1954, contra a Alemanha Ocidental, no Milagre de Berna.

Sete anos depois, pelo Barcelona, Czibor e Kocsis voltariam a Berna para disputar a final da Copa dos Campeões da Europa diante do Benfica. A partida ficou conhecida como “la final de los postes”, pela importância que as traves tiveram nos lances dos gols que foram e não foram, e deu o empurrão final para a FIFA arredondar os paus da goleira, que eram planos. O Barcelona dominou amplamente a partida mas, digerido pelo azar e odiado pelas traves, levou 3 a 2. Desesperado, Kocsis concluiu, sobre o estádio Wankdorf: “agora entendo o que ocorreu em 1954. Neste gramado pesa uma maldição sobre todo húngaro que o pise”.

Após a derrocada do Honvéd, o Ferencváros assumiu a posição de destaque no cenário internacional, entre os times da Hungria. Venceu a Copa das Feiras em 1965, e foi vice dela três anos mais tarde. Também chegou à final da Recopa Europeia em 1975, sendo derrotado pelo Dynamo de Kiev. Curiosamente, o último time húngaro a chegar numa final continental foi o pequeno Videoton, da impronunciável cidade de Székesfehérvár, que em 1985 perdeu a decisão da Copa da UEFA para o Real Madrid, depois de eliminar potências como Paris Saint-Germain, Partizan Belgrado e Manchester United.

A Hungria e suas glórias voltaram à memória graças à declaração dada por Carlos Queiroz após o sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010. O treinador de Portugal, que claramente se empenha para tornar seu time tão inofensivo quanto era antes da chegada de Felipão, disse não temer o complicado grupo em que caiu. Com o reaparecimento de Brasil e Coreia do Norte, dois adversários lusitanos em jogos famosos da Copa de 1966, Queiroz foi perguntado sobre as similaridades do futuro caminho português com o de quarenta e três anos atrás. Respondeu: “para repetir 66, faltam Pelé, Eusébio e a Hungria”.

Pelé e Eusébio aposentaram-se com láureas. A Hungria continuará faltando. De campanha abaixo do medíocre nas Eliminatórias, ainda vê nos seus dois clubes simbólicos o arranhão cruel da infelicidade que parece sempre surgir no horizonte dos húngaros. O Ferencváros, que se orgulhava de ser o único time do país a estar sempre na primeira divisão desde a criação do campeonato nacional em 1901, foi rebaixado por dívidas em 2006 (voltou na temporada passada). O Honvéd, que não ganha a liga desde 1993, foi recentemente acusado de COMBINAR RESULTADOS para favorecer apostadores. E o pior: levou 5 a 1 no jogo que teria manipulado. O futebol magiar, que começou a decair pelos comunistas, chegou ao fundo da vergonha por causa do capital. Pobres húngaros, nem às ideologias podem se apegar.

Imagem tirada de um quadro de vídeo do jogo.

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