segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Perpétuo até o fim da semana (2): Claudio Bieler

O primeiro gol é normal. O segundo gol é normal. O terceiro gol é normal. Mas o quarto é um absurdo. E a partir daí, chega a ser indecente. Goleadas por três a zero não existem. Isso é invenção de jornalistas que queriam agradar os torcedores. Triunfos por três a zero são perfeitamente aceitáveis e dentro dos padrões. Bonitos, com domínio amplo – e fim. Se um dia eu lançar um dicionário, o conceito do termo banalizado vai ser mais ou menos esse:

Goleada [De golear + -ada] S. f. Bras. Fut. Vitória por margem de três gols ou mais, na qual a equipe vencedora anota pelo menos quatro tentos.

Os meninos que frequentam as arquibancadas dos estádios crescem esperando o quarto gol. E geralmente a espera vai até ali. Existe uma lei não escrita dentro do futebol, uma espécie de limiar entre o que é castigo aceitável para o mau futebol e o que parece violar os DIREITOS HUMANOS. Até o quarto gol, tudo bem. Nós somos ruins mesmo, não estamos jogando nada, faz parte. Mas se marcarem o quinto já é sacanagem. Temos família para sustentar, porra, parem de ficar se exibindo.

Talvez por isso a linha divisória entre o quarto e o quinto gol não costume ser batida tão facilmente. Deve ser só impressão, mas os carnês de campeonatos pelo mundo aparentam ter muito mais vitórias por cinco a DOIS do que por cinco a um ou a zero. Como se os vencedores só se sentissem autorizados pelos ANJOS a superar a barreira dos quatro depois de conceder alguma compensação aos subjugados – no caso, a honrosa diminuição da diferença de gols.

Causa espanto quando determinados times não apenas chutam essa oculta etiqueta futebolística como também deixam evidente que querem subverter todo o CAVALHEIRISMO da pelota. Mesmo num amistoso típico de pré-temporada, de profissionais contra amadores, goleadas com números mais expressivos que quatro bolas na rede adversária provocam alguma COMICHÃO. Em partidas decisivas, é de alterar o modo como o planeta gira.

Os três primeiros títulos mundiais foram definidos ao som de narrações que precisavam descrever mais que quatro gols do campeão. Em 1960, o mágico Real Madrid de Di Stéfano e Puskas pisoteou o poderoso Peñarol por 5 a 1 no Santiago Bernabéu. Em 1961, o raivoso Peñarol de Spencer escolheu o Benfica para desfazer os fantasmas do ano anterior, metendo 5 a 0 nos portugueses na segunda das três partidas da Copa Intercontinental, disputada em Montevidéu. Os benfiquistas voltaram a ser vítimas em 1962, dentro de casa, quando caíram por 2 a 5 para o Santos de Pelé – e levavam 0 a 5 até os quarenta do segundo tempo.

Na América do Sul, o caso mais recente de time que não respeitava os limites do BOM-SENSO em jogos decisivos foi o São Paulo. Em 1993 botou 5 a 1 no Universidad Católica do Chile, pela final da Libertadores, e no ano seguinte aplicou 6 a 1 num Peñarol que já estava no CREPÚSCULO de suas glórias passadas, desta vez na decisão da extinta Copa Conmebol. A Liga de Quito, que no Brasil preferimos chamar de LDU, talvez seja a herdeira e o expoente desse modo de vida DESPUDORADO neste final de década.

Há pouco mais de um ano, o time só não aplicou uma goleada sobre o Fluminense na decisão da Libertadores porque os cariocas descontaram no segundo tempo – e 4 a 2, com seus dois gols de diferença, não pode ser goleada segundo o Dicionário Brum de Futebolês. Como os cariocas estivessem já classificados para a final da Sul-Americana deste ano e a Liga ainda precisasse garantir sua vaga pela outra semifinal, o time fez uma reunião no vestiário e concluiu: vamos massacrar alguém logo, mas massacrar mesmo; depois nós vemos se conseguimos outra dessas.

A vítima foi o River Plate de Montevidéu. Quiçá com outro adversário a tentativa dos equatorianos não passasse da intenção, mas ao River Plate de Montevidéu lhe agrada picotar os sonhos com PUNHALADAS sem fim. Os Darseneros são um caso exemplar de time pequeno que surpreende, chega a encantar e, na hora em que param de duvidar dele, resolve se entregar da maneira mais espetacular que consegue imaginar para aquele dia. No Clausura Uruguaio de 2008, o tiki-tiki dos comandados de Carrasco MALTRATAVA os oponentes. Em 15 rodadas, a equipe foi às redes 48 vezes, uma média de 3,2 pelotas nos cordões adversários por jogo.

O ápice daquilo tudo foi um certo primeiro tempo contra o Nacional, em 19 de abril: com menos de 35 minutos, o Bolso caía por 3 a 0. Ao fim daquela tarde, no entanto, os tricolores saíram do Centenário triunfantes por 3 a 6. E os três pontos certos faltaram para o River na tabela. O quadro ficou empatado em pontos com o Peñarol na liderança do Clausura 2008, contando 12 vitórias, 1 empate e 2 derrotas, e um playoff se fez necessário. O jogo para apurar o campeão teve outro começo infernal do River, que abriu 3 a 1 em 40 minutos, e outra remontada dos opositores. O Peñarol venceu o duelo por 3 a 5. A equipe Darsenera pagava por manter o ofensivismo quando devia segurar o resultado.

Em Quito, na semana passada, o River entrou em campo classificado contra a Liga. Mantendo o resultado do início, estaria na finalíssima, graças aos 2 a 1 favoráveis que obteve em casa. Vantagem dos riveristas que amam entregar nessas horas mais crise de abstinência por goleadas dos equatorianos que adoram golear nesses momentos. Um mais um igual a sete. A soma era tão explosiva que dinamitou os ALICERCES da matemática. A Liga de Quito fez todos os gols necessários para acalmar os nervos, uma vez mais desrespeitou a LÓGICA dos confrontos decisivos, e foi dormir com a vaga na final e ABUSIVOS 7 a 0 de crédito na sua conta. Sete a zero no jogo que antecede a disputa da taça. SETE. A Convenção de Genebra devia proibir.

Claudio Bieler, o argentino que deseja se naturalizar equatoriano, deu as ordens para iniciar e terminar a surra. Anotou o primeiro e os dois últimos gols da noite. El Taca, que há um ano e meio marcou aos 2 minutos de partida e iniciou a vitória da LDU na primeira final da Libertadores sobre o Flu, será um dos poucos a jogar essa nova decisão, que reedita o confronto. Dos pelo menos vinte e dois nomes capazes de estar nessa condição, nem um terço decidirá a Sul-Americana. São cinzentos esses dias de personagens fugazes no Continente. Pela sua tripleta de quinta-feira, pela falta de vergonha dos seus companheiros em meter goleadas nos momentos que não deveriam ter goleadas, e pela garantia de fardar nas finais de 2008 e 2009, Bieler azulou um pouco o gris dos céus e foi o homem da semana.

Foto: EFE

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