terça-feira, 13 de outubro de 2009

A terra das canchas condenadas

Virou a grande questão nacional. Nem mesmo os periódicos sérios, cujas páginas são valiosas demais para serem usadas com esporte, deixam de cobrir a discussão. Algumas editorias projetam cadernos especiais inteiros para enrodilhar os argumentos de todas as partes e tentar levar o debate a algum consenso. O Olé tem em mente uma edição de luto, com letras brancas sobre fundo negro, porque economia de tinta é nada diante do momento histórico.

De Ushuaia ao mais remoto galpão dos pampas ao Norte, mateando ou bebericando umas Quilmes que suam com a lamúria patriótica dos que brigaram e saíram derrotados, as rodas de vozes matam tardes e decapitam noites em calientes esgrimas verbais. Não está fácil torcer pela Argentina nessas DISPARATADAS Eliminatórias à Copa de 2010. Depois de sábado, embora a matemática tenha dito que sí, todavía podemos, o aguardo do último jogo pelos aficionados é comparável ao do condenado à morte que só espera o alçapão da forca se abrir.

Maradona não admite, mas pelos corredores da AFA se comenta que não foi só a toalha que o treinador jogou – ele também estaria atirando as camisetas para o alto nas preleções. Por sorte, elas vinham caindo em mãos mais ou menos certas, ainda que os atletas não estivessem exatamente encontrados em campo. Mas os pontos que não entraram no AÇAFATE portenho contra o Peru exigem que se tenha mais que sorte na partida do Uruguai. E só Deus, que, alguns descobrem agora, não é Diego, pode imaginar o que renderá o confronto em Montevidéu.

Não importa que baste uma vitória no Centenário, nem que o Chile de Loco Bielsa possa enterrar um Equador enamorado das suas possibilidades de entrar na Copa do Mundo pela terceira vez seguida. É como se a rodada já estivesse sentenciada. O empate de sábado, contra o Peru, feriu os sonhos argentinos tal qual uma FOLHA DE PAPEL abre sutis arroios de sangue nos dedos desprevenidos. Aquele gol aos noventa minutos... aquele maldito gol que a tevê agora reprisa, no horário nobre, para olhos que contemplam o lance entre a ira e a lágrima. Aquela maldita chuva interminável e aquele maldito empate depois de uma desatenção que simplesmente não poderia haver numa partida daquele nível.

Carlos, que proferiu heresias pelo tanto que duraram aqueles minutos, sente um ímpeto de repetir tudo agora, quando acompanha a reprise pela tevê. A cabeça esquenta com a simples audição de um locutor que, desesperado, berrava carajos e contava a história das putas madres que haviam dado à luz os peruanos. Diante do Peru, ainda. Diante da mais inocente das esquadras sul-americanas, há anos. Estava certo que aquele 1 a 1 não poderia gerar qualquer esperança para o jogo do miércoles de mierda frente a um Uruguai levado por mais de oitenta mil gargantas que só viram a Celeste jogar duas Copas nas últimas cinco.

A grande dúvida que aflige os argentinos, diz o cabrón da reportagem, não é mais a presença na África do Sul. Mesmo com a classificação plausível. Antes do jogo seria estranho cogitar uma situação assim, mas o estado anímico alterou-se da fé irracional para a desesperança completa no atômico milésimo em que a pelota foi encaçapada na meta argentina – e a tevê reprisa de novo, aumentando a vontade de Carlos de acabar com o triste espetáculo destruindo seu aparelho a golpes de machado. Naquele instante da noite de sábado, o condor passando pelo céu do Peru veria uns incas pós-modernos felizes pelo trozo de história proporcionado pela sua seleção dada como morta, em cantorias que contrastavam com o Monumental silêncio de Núñez, alguns milhares de quilômetros ao sul do sul da América.

De qualquer maneira, desde tal momento os Albicelestes desistiram dos planos mundialistas e, pragmáticos, puseram-se a resolver questões que o futuro acabaria trazendo inevitavelmente. Um jogo daqueles pesa demais na memória para que se veja o combinado nacional atuando outra vez no mesmo palco. A conquista da Copa do Mundo de 1978 na cancha do River Plate parece ter sido achicada nessas horas de raiva apaixonada. Diz o apresentador: o 1 a 1 contra o Peru, com aquele gol aos noventa minutos, vem sendo considerado inaceitável pelo povo, que não quer reutilizar o campo. Hoje, segue o repórter, cada rincão da Argentina discute com fervor qual será o novo estádio da Seleção. E defende o seu.

Toda hecatombe tem que ter culpado. Maradona, o treinador, ainda é Maradona. E Maradona dispensa outros comentários, é explicado pela tautologia e absolvido pelos tempos. Os jogadores, apesar de uns bem odiosos e dispensáveis ali no meio, não podem ser todos substituídos. O único que poderia cambiar de fato seria o comando da AFA, mas esses são símbolos menores que o estádio, o grande cenário de sonhos que se desfizeram. O estádio, e esse estádio com nome bem apropriado, Monumental, foi feito réu sem chance de defesa, e declarado monumento ao fracasso ainda não consumado de 2009. Pode ser que o mundo acabe em três anos, mas enquanto houver um humano vivo, restará a lembrança de que ali, num aguaceiro outubrino, a Argentina que tinha em suas linhas o maior jogador em atividade no planeta deixou de ir à Copa.

O jogo de Montevidéu é que confirmará (ou não) isso para a matemática, mas o empate contra o Peru é a tragédia verdadeira. Há, pois, outros estádios no país. Chega de Monumental. Carlos agora vê como a reportagem alterna rapidamente imagens de canchas gigantescas não utilizadas da capital e até potreiros do interior. Quase como uma escolha de cidades-sede de Copa do Mundo. Passa-se uma lista de atributos positivos e negativos, os porquês de a Argentina acolher determinado local como sua casa pelos anos seguintes. Rosário, pela lembrança do recente 1 a 3 imposto pelo Brasil no Gigante de Arroyito, é um local desconsiderado. Mas o país é grande.

Há Salta, onde o Boca Juniors recebeu algumas partidas internacionais nos últimos anos. Há o Olímpico de Córdoba. La Plata e seu estádio único, fortalecida na candidatura pelo flamante Estudiantes tetra da América. Entrevistando o povo nas ruas, nota-se que muitos gostariam de aproveitar a oportunidade para quebrar a ditadura da capital e fazer a Albiceleste adotar um rodízio nos estádios. Sempre teremos Mar del Plata. E Mendoza, e Quilmes, e Lomas, e mais tantas canchas capazes de receber mais de trinta mil almas.

Um irônico de Santa Fé diz que o estádio da sua cidade deveria ser escolhido, ao menos para as próximas Eliminatórias. “Nos quedamos tan chicos”, afirma, “que la Selección podría usar el Cementerio de Elefantes y su leyenda”. Proprietário do campo, cujo nome verdadeiro é Brigadier General Estanislao López, o pequeno Colón fez o estádio merecer o apelido por criar o costume de abater os adversários-elefantes que pisavam por lá. Em 1964, até o Santos de Pelé encontrou uma cova do seu tamanho no cemitério de Santa Fé.

Nem seria necessário sair da capital. Em Buenos Aires há excelentes estádios capazes de assumir a condição de sede da Albiceleste. Um pouco mais ao lado, Avellaneda aguardaria de braços abertos, com o infinito Cilindro do Racing Club e o novíssimo Libertadores de América do Independiente, que deve ser inaugurado com uma partida oficial antes do fim deste mês. Qual um tiroteio descontrolado, os bate-bocas seguem. Podem morrer no jogo de amanhã, com um milagre diante do Uruguai que mereceria a alcunha de Centenariazo. Pero los sueños son sueños, e a certeza do coração é que tudo se acabou.

No próximo bloco, a expectativa pela declaração de Cristina Kirchner consolando o povo argentino.

Nessa altura Carlos desliga a tevê. Era uma reportagem interessante, mas o exercício de imaginação estava ficando real demais. Che, a Argentina havia vencido o Peru, e o maldito gol aos noventa minutos foi apenas susto, não desilusão. Se houver desastre virá de Montevidéu; o gramado de Núñez já garantiu sua absolvição. Ao seu lado, o filho de seis anos, já amante do futebol mas pouco iniciado na sua história, tinha grandes interrogações estampadas no rosto. Sentiu uma falta naquele monte de estádios mostrados pelo programa... “Papá, ¿y por que no La Bombonera?”

O pai então contou de um jogo em 1969. Lembrou como naquele ano o mesmo Peru empatou por 2 a 2 na Bombonera, firmou a última ausência da Albiceleste em mundiais e desgraçou o estádio do Boca para jogos da seleção pela eternidade. Contou que daquela vez, como no sábado, um gol salvador foi marcado nos acréscimos – e também em condições irregulares. Se Palermo estava impedido no jogo deste ano, em 1969 Brindisi marcou o terceiro gol, que valeria passagem para a Copa do Mundo do México, fazendo falta sobre o arqueiro Rubiños.

– Pero hace cuarenta años, hijo mío, nos anularon el tanto.



Fotos arrancadas das entranhas da internet.

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