Gramado sempre surge com algum motivo para atrair os FORÂNEOS. Geralmente é a neve. Mas quem sobe a Serra também pode estar correndo atrás de uma gastronomia quase SUÍÇA, hortênsias florescendo até nos BUEIROS, um Festival de Cinema acontecendo aqui, uns papais noéis correndo perdidos acolá e belezas nativas exibidas pelas esquinas. Em último caso, uma simples neblina já dá ar de estamos-nos-morros-que-beleza e carrega boas dúzias de almas ladeira acima.
Na falta de todo o resto – não é época da maioria dos citados, a cidade estava meio vazia e nem mesmo as hortênsias se dignaram a surgir –, havia a névoa. Mais, mais que névoa, mais. Umas quinhentas camadas de lençóis brancos enroladas uma após a outra, fazendo sumir a vastidão do horizonte e reduzindo a vista a alguns metros diante do nariz, dependendo do local. Mas havia também um estádio de futebol. Estranhamente.
Gramado não é cidade de futebol. A maioria de nós, ingênuos a observar o mundo através das lentes televisivas, talvez até saibamos que por lá existe um time, um tal Gramadense, cujo nome vezemquando surgia nas pré-temporadas de Gre ou Nal por aquelas bandas. Normalmente cedendo seu estádio. Às vezes tendo a chance de enfrentar os grandes de Porto Alegre num embate que nem chegava a merecer ser chamado de amistoso, mas jogo-treino.
Pois o Gramadense, e agora eu exijo tambores RESSOANDO ao fundo, tem oitenta anos de história e para os não-íntimos atende por Centro Esportivo Gramadense. Não é tão conhecido porque, de fato, até aqui havia feito muito pouco para ser registrado fora das fronteiras regionais, pero en el ’09 han cambiado las cosas y venido la ilusión. Disputando o Campeonato Estadual de Amadores, que só mantém o amadorismo na fachada e no nome, já que muitos jogadores profissionais campeiam por suas equipes e mesmo os desconhecidos acabam recebendo GRATIFICAÇÕES externas, o Gramadense de 2009 caminhou pelas fases do certame mandando beijos-abraços-me-liguem para todos os que surgiram pela frente.
Como o campeonato é curto – atualmente apenas TREZE clubes ARGUMENTAM nos gramados em busca do direito de se dizer o melhor do Estado –, dez jogos levam à final. Na fase de abertura, o time de Gramado fez de vítimas o Tamoio de Viamão, o Americano de Novo Hamburgo e o arquirrival Serrano de Canela, que desde o princípio dos tempos gaba-se de ser bicampeão gaúcho entre os amadores, contra até então nenhum título dos vizinhos gramadenses. O Tamoio voltou a ser oponente superado nas quartas-de-final e, nas semis, o despachado foi o Estância Velha.
A decisão de ontem foi desenhada quando, no outro jogo semifinal, o atual campeão Grêmio Esportivo Ibirubá viu seus jogadores desembestarem a correr feito CUCARACHAS desnorteadas e caiu levando um inacreditável agregado de SEIS a um para o Sport Club Ivoti (cujo escudo é idêntico ao do Inter de Porto Alegre, porém AZUL, para fazer média). Poderia ter sido um bom indício de que os ivotienses iam imparáveis pela taça, mas no penúltimo domingo, em plena Ivoti, o Gramadense venceu o primeiro jogo decisivo por 1 a 2.
Era nessas condições, jogando pelo empate e podendo perder por até 0 a 1 em casa, que a equipe de Gramado entrava em campo na tarde de ontem para disputar a partida de volta da decisão. O título acenando no DOBRAR DA ESQUINA fez cerca de um milhar de torcedores locais esquecerem que na mesma hora estava sendo jogado um Gre-Nal e lotarem seu pedaço do ESTÁDIO DOS PINHEIRAIS. No lado oposto ao pavilhão, nas arquibancadas descobertas, a massa vinda de Ivoti não chegava a encher seu setor, mas cumpria com honra seu papel.
As sacadas dos prédios ao redor da cancha eram outras arquibancadas, gratuitas, a receberem aficionados da casa. Então começou o jogo. O Gramadense de azul. O Ivoti, tão branco quanto a neblina no exterior do perímetro dos Pinheirais. Por aqueles momentos, ainda que as rádios insistissem em lembrar do jogo de Porto Alegre, dos eternos rivais se digladiando no Beira-Rio, de Victor cometendo uma rara falha e do Inter fazendo 1 a 0 sobre o Grêmio com três minutos de partida, era como se não houvesse nada fora daquele estádio além dos primeiros edifícios visíveis.
O centro do mundo era o campo do Gramadense. Poderia ser até o último lugar do mundo que ainda existisse. Depois daquilo, os olhos só alcançavam o branco. Ninguém sabia se DEUS não tinha decidido dar cabo do planeta antes do previsto (2012, como sabemos) e deixado apenas aquele campo para mais tarde, porque um Gauchão Amador que não chega ao fim é pendenga que nem o Todo-Poderoso quer ter de resolver. O Gre-Nal das rádios seria apenas ILUSÃO mantida pelo CRIADOR. Então que jogassem, e bem, para fazer valer aqueles gritos e batuques vindos de uma torcida que não se deu o direito de descansar enquanto a bola rolou. Porque, se deviam todos morrer, que fosse com glória.O Gramadense jogou melhor. Após os primeiros minutos pouco interessantes, a maior PENETRAÇÃO do time da casa SOLAPOU as vagas aspirações do Ivoti. Aos vinte, Murilo diagnosticou morte cerebral nos visitantes, marcando o 1 a 0 que pôs fim às ações ivotienses na tarde. Melhor em campo até aquele momento, o camisa 7 de Gramado gambeteou a marcação e atirou a pelota nas cordas (acima, o gol; abaixo, a comemoração). Nove minutos mais tarde, Marcelo Buda entrou na área pela direita e tocou rasteiro na saída do goleiro para dobrar a vantagem de Gramado.
Buda, um homem que no passado foi capaz de perder dois gols sem goleiro numa mesma partida, recuperar-se e marcar depois o tento da vitória (São Luiz 1-0 Pelotas, Segundona de 2005), bateu no peito e se ajoelhou sorridente. Seu gol o colocava muito perto de somar uma medalha de Campeão Gaúcho Amador à sua de vencedor da Segundona do Rio Grande – faltando apenas a Copa Libertadores para completar a TRÍPLICE COROA das mais PORTENTOSAS conquistas que qualquer SER pode almejar ao longo da existência.
Antes da meia hora de partida, o agregado subia para quatro a um a favor do Gramadense. Nem ARROUBOS de raça pareciam capazes de recuperar um Ivoti espalhado sobre o céspede como migalhas à mercê dos quero-queros. No intervalo o coro de “é campeão” amealhou mais gargantas, e os seguidores da ideia de que já não existia mundo além da névoa pensavam se não estaria bom o bastante dar um ponto final ali, quando o êxtase era insuperável.
Não foram capazes de comover os céus, e o jogo seguiu. Sem maior ordem, nem mesmo uma gana de “precisamos ir para cima num último esforço”, os ivotienses simplesmente foram avançando. Numa dessas, o goleiro Bosco, do Gramadense, parece ter esquecido no ar o que exatamente deveria fazer com aquele pulo, não acertou a bola e deixou a meta aberta. Murilo, agora o Murilo do Ivoti, copiou o tocaio oponente e estufou as redes. Dois a um que não mudava nada.
Mas a queda de Bosco foi também um rompimento do IDÍLICO final perfeito, de goleada, título e sem gols sofridos. Pouco depois, quase ao mesmo tempo em que o sol saía e dissipava a neblina, as rádios anunciavam o fim do Gre-Nal, e os colorados triunfantes vibrariam alheios ao Gramadense, pois, que diacho, ainda havia um mundo ao redor dos Pinheirais. No entanto, logo voltaram ao jogo. O mundo, os Gre-Nais e mesmo o UNIVERSO podem continuar existindo e serem relegados a um terceiro plano quando se está na iminência de uma glória inédita.
No minuto 86, Cinval arriscou um chute despretensioso da intermediária ofensiva do Gramadense e o goleiro adversário, tentando encaixar, aceitou. Aos 89 minutos e 50 segundos, foi um ivotiense quem protagonizou o último (e mais belo) lance do jogo. De voleio, Daniel diminuiu o tamanho da derrota do seu time, sem tempo para mais. Com o 3 a 2 na contagem da tarde e a bola no centro do campo, o árbitro Jean Pierre Gonçalves Lima só aguardou que o pontapé de reinício fosse dado para soar o último apito da edição 2009 do Gauchão de Amadores.
Passados oitenta anos da fundação, o Gramadense conquistou seu primeiro título do Estado. Garantiu presença no Campeonato Sulbrasileiro de Futebol Amador de 2010 e, quase tão importante quanto tudo isso, diminuirá um pouco a flauta tocada pelos torcedores do rival, o Serrano. O capitão do time de Gramado, Amarelo, banhou-se com espumante (foto de abertura), ergueu a taça e, honrando o saudável amadorismo invocado pelo nome do torneio recém-conquistado, gastou seus cartuchos de LATIM como faria um torcedor:
– Não quero saber de timinho de Canela que tem dois títulos. Nós também vamos ter, e ainda vamos ganhar o Sulbrasileiro.
Gramado continuará sendo a Suíça brasileira, a terra das flores, dos kikitos e da neve. Mas agora também é a terra do campeão de tudo o que chamamos de Rio Grande. E ninguém dali se importa que a cidade não vá atrair mais turistas por causa disso.
Fotos minhas.
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