Foram cinco ou seis horas entre a interrupção do jogo em Santa Bárbara do Sul e a chegada em Ijuí. A maior caravana festiva jamais vista, que se planejara no 19 de Outubro desde o jogo da semana anterior, não aconteceu. No caminho de volta ninguém sabia o que seria da partida. Os que se feriram mais duramente ainda precisavam lidar com os inconvenientes dos próximos dias. Visitas a médicos, recuperações mais ou menos longas, tratamentos e complicações desconhecidas.
O mar de carros estropiados sobre a BR-285 era um lento cortejo que para ser fúnebre só faltava ter mortos. No posto de gasolina perto de Santa Bárbara, os torcedores de bem venceram os exaltados que queriam se banhar com mais sangue. O plano de retornar à cidade com uma estratégia montada e ceifar vidas não encontrou tantas vozes favoráveis quanto seus idealizadores gostariam. Sozinhos, tiveram que voltar com os demais ijuienses.
Um campeiro que se sentasse à beira da estrada, ouvindo o ruído dos fuscas e chevettes, o quase desmanchar dos ônibus que, sem ser exatamente bons, agora estavam ainda mais avariados, poderia saudar os de Ijuí com os acordes de uma milonga. Toques lentos e binários a recordar com dolência as esperanças mantidas durante toda a semana, todo o ano, e que agora estavam viradas naquilo. Um jogo cujo fim não era mais imaginável. Interrompido quando se perdia por 1 a 0. E que, para o São Luiz subir diretamente, precisava ser vencido: Guarani e Inter-SM haviam confirmado seu empate por 1 a 1 na outra partida decisiva da tarde.
O Guarani garantira o acesso. O São Luiz precisava de pelo menos um ponto para forçar um jogo extra contra o Coloradinho de Santa Maria. Pelos próximos dias, seria o Inter, e não a Associação Santa Bárbara, o verdadeiro adversário do time do 19 de Outubro. Quem ficara em Ijuí, ouvindo a rodada pelo rádio, soube de tudo isso antes dos que se envolveram no conflito do Estádio José Antonio Dumoncel e arredores. Mas, sem celulares, ficaram obrigados a ouvir o terror ser exposto na voz de uns poucos profissionais da imprensa, sem ter como dimensionar o que acontecia aos seus.
Os ijuienses escutavam como amigos e parentes, antes maioria, tinham ficado repentinamente menores em número. E as emissoras emendavam contando sobre pessoas desmaiadas, tiros, torcedores carregando companheiros feridos. O desespero se adonou da cidade. Renato Moraes tira da memória a imagem que encontrou quando voltou para casa. A esperada cena de aglomeração pública, mas sem o festejo pelo acesso que se previa no início do dia:
“Ijuí inteiro estava na Praça da República esperando os ‘heróis de Santa Bárbara’ chegarem”, conta. Pelo planejamento histórico de Ijuí, a Praça da República tem a facilidade geográfica de ser cercada pelas quadras da Prefeitura e das duas igrejas mais tradicionais. Ao norte, o templo luterano. Ao sul, o católico. Os dois se encheram de pessoas ligadas a quem tinha ido para Santa Bárbara do Sul. Oravam para que os entes queridos e amigos chegassem bem. Ou simplesmente chegassem.
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Uma charge da época comparou Santa Bárbara ao Iraque, onde se desenrolava a Guerra do Golfo. Entrevistado pela Rádio Gaúcha na noite da segunda-feira, 10 de dezembro, o prefeito barbarense José Antonio Dumoncel disse que Ijuí havia mandado à sua cidade o que tinha de pior – para ele, os torcedores eram “vândalos, drogados e marginais”. A primeira publicação ijuiense a sair depois da briga veio com três dias de defasagem, na quarta-feira 12. O editorial daquele Jornal da Manhã terminava lembrando que “o clima da Segunda Divisão, tradicionalmente, é de guerra”, e aquilo deveria ter alertado os barbarenses sobre as dimensões que o jogo poderia tomar.
O texto justificava a briga sem argumentações mais profundas, dizendo que “torcida é torcida” e um “distúrbio qualquer” no meio de milhares de pessoas poderia gerar consequências como as vistas, dada a importância e a situação do jogo no momento dos incidentes. A opinião, porém, era dispensável. O que verdadeiramente interessava aconteceria ainda naquele dia, e estava na capa do periódico: “Tribunal decide o futuro do São Luiz”.
Naquela mesma noite de 12 de dezembro, o pleno do Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) da FGF fez sessão em caráter de urgência para julgar os acontecimentos da partida que não acabou. O interesse da Associação Santa Bárbara era pouco seu e mais do Inter-SM: defendendo a posição barbarense estavam pessoas ligadas ao clube de Santa Maria. Sua intenção de manter o resultado do intervalo como placar final, contudo, mal foi considerada. Os julgadores trabalharam com duas possibilidades: recomeçar a partida do 0 a 0 ou fazer apenas o segundo tempo, continuando com o placar parcial de 1 a 0 para o Santa Bárbara.
As trocas de farpas no TJD duraram quatro horas. Em jogo, a temporada. Não houve denúncia contra o São Luiz nem na súmula do árbitro e nem no parecer do procurador. As provas apresentadas pelas partes foram consideradas insuficientes e contraditórias – jamais se definiu que torcida teria iniciado a briga. De certeza, só que ela tivera início nas sociais do estádio, setor de responsabilidade do Santa Bárbara. Os ijuienses tentaram usar o fato para ganhar a vitória no tribunal, mas não conseguiram.
Sérgio Leal Martinez, presidente da sessão, entendeu que a partida havia sido cancelada pelo árbitro, e não apenas suspensa. Daquela forma, seria necessário o reinício do jogo desde o nada, o minuto zero do zero a zero. Foi acompanhado por todos aqueles que tinham o poder de definir os futuros lançados sobre a mesa. Por unanimidade, decidiu-se pela marcação de uma nova partida para o domingo seguinte, 16 de dezembro, no Estádio José Antonio Dumoncel, com portões fechados.
“Naquela ocasião a comunidade de Santa Bárbara, o prefeito, o seu Dumoncel, mais o nosso presidente, o finado Flávio Burtet (presidente do clube), eles decidiram que nós não iríamos mais jogar futebol”, diz Jair Galvão. Dumoncel alega não ter recebido documentação oficial de que a partida ocorreria lá. Como o contrato de cessão do campo municipal ao clube acabara após o jogo do dia 9, a administração da cidade voltava a definir o que fazer nele.
No dia do jogo remarcado, o estádio parecia ter sido desmanchado em prol da extração de petróleo. Todo o alambrado fora retirado, seus postes de sustentação derrubados, o portão da entrada arrancado e uma goleira removida. O que mais se comentou na época, porém, foi o estado do gramado, interpretado como um indício claro de que tudo ocorrera para evitar a partida: o terreno de jogo apareceu arado, e tinha buracos em que um homem ficava até a cintura sob a terra.
Ainda hoje há em Santa Bárbara a versão de que toda a depredação teria ocorrido por parte dos são-luizenses, durante a briga. Algo que os vídeos da época e o próprio Dumoncel, a seu modo, desmentem: “eu reformei o estádio. As goleiras não estavam em boas condições, eu arranquei. Aí fizemos uma lavração nas áreas onde não tinha grama, e fomos fazendo adubação”. O ex-prefeito de Santa Bárbara do Sul declara que só foi avisado sobre a nova partida um dia antes do jogo, já no fim de semana, sem ter como convocar alguém para dar ao campo condições de receber um duelo.
Somente jogadores, dez dirigentes de cada clube e a imprensa estavam autorizados a acessar o estádio. A falta de alambrados e outros dispositivos de segurança, assim, não seria empecilho para a realização da partida. Carlos Martins, o mesmo árbitro do confronto original, tentou negociar com Dumoncel.
– Eu posso atrasar o começo do jogo se o senhor garantir que o campo vai ser consertado.
– Hoje é domingo, o pessoal está dispensado.
– Mas não tem como nós taparmos esses buracos, cravar as goleiras de novo?
– Não tem, não tem. A Prefeitura já cumpriu a parte dela, isso não existe. O Santa Bárbara ganhou o jogo.
Para Dumoncel, a insistência em não decretar vitória barbarense e realizar nova partida só tinha um motivo – a presença de Emídio Perondi, filho de Ijuí e ex-presidente do São Luiz, no comando da Federação. “O presidente da FGF era o Rubens Hoffmeister, e o imediato dele era o Emídio Perondi. Inclusive o Hoffmeister era meu amigo e ficamos desafetos. Ele acabou falecendo quando estávamos desafetos ainda. Mas eu perdoo. Ali foi uma pressão do Perondi para favorecer o São Luiz de Ijuí”. Perondi, cuja suposta influência oculta segue causando raiva nos barbarenses, esquivou-se do escrutínio público e não arriscou dar margem a críticas às suas condutas: absteve-se de votar em todas as decisões da FGF que envolveram a partida.
Dentro do estádio, remoendo a negociação frustrada e incapaz de autorizar o jogo, o juiz classificou o episódio como um “circo armado”. Eugênio Strailev, representante da Federação na partida, garantiu que o Santa Bárbara seria punido. O time prorrogara o contrato dos jogadores, e pôs uma equipe em campo naquele dia, mas era preciso assegurar a arena. Dizia ele que não interessava que o estádio fosse municipal e o clube o utilizasse por cessão, aluguel, empréstimo ou qualquer outra forma: a Associação Santa Bárbara só entrara no campeonato porque provara ter estádio para receber jogos.
Rubens Hoffmeister ventilou a hipótese de tirar o clube do quadro de filiados à FGF. À imprensa, na época, chamou Dumoncel de “político sem expressão”, um “bombachudo do interior” que estava “querendo ganhar notoriedade demolindo o estádio da sua cidade para impedir o jogo marcado pela Federação”. Farto das idas e vindas e tendo o impasse entre São Luiz e Inter-SM para resolver, sugeriu uma absurda mudança de regulamento: queria realizar dois jogos diretos entre as equipes, um em Ijuí e o outro em Santa Maria, fazendo subir quem levasse a melhor.
Sua ideia naturalmente não encontrou eco. Era preciso dar um fim àquele embate entre os ijuienses e os barbarenses. E só entre eles, por mais que os santa-marienses estivessem interessados no desfecho. Sem poder inverter o mando de campo e com o estádio de Santa Bárbara do Sul arruinado, a FGF enveredou pelo caminho da megalomania. A nova remarcação colocou a partida na quinta-feira, 20 de dezembro, num campo neutro. A Segundona Gaúcha de 1990 teria o último acesso definido no maior estádio do Rio Grande, o Beira-Rio de Porto Alegre.
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Um comentário:
Olá, boa tarde. Vivi uns dos momentos mais importantes como atleta profissional de futebol. Estive nos vestiários de quase todo o RS. Convivi com excelentes e briosos jogadores como Osvaldo, Hélio, Ilton, Machadinho, Zeca, Jair Galvão, Baiano, Edson Luiz, Vandenir, Chumbinho, Volnei, onde através das lições de posicionamento tático do nosso técnico "Canhão da Serra" Bebeto, nossa equipe chegou onde chegou devido a muito trabalho. Estas histórias são fantásticas, e, o futebol por sí só é assombroso. Não se vive só de gols. Tem de tudo, inclusive esta relatada por vcs. Abraços. Grillo.
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