Os alunos que se sentaram e ainda se sentam diante do professor de matemática Renato Moraes talvez não desconfiem da dimensão da sua glória dentro do futebol amador de Ijuí. Renato foi um dos infalíveis na escalação do Ouro Verde do Bairro Assis Brasil, maior campeão varzeano do município, durante a era dourada do clube, entre os anos 1970 e o início da década seguinte. Atuando muitas vezes ao lado do atual treinador da Seleção Brasileira DUNGA, que estava longe de ser o maior destaque da equipe, ele empilhou títulos ijuienses e ajudou a botar sobre o escudo do time as três estrelas que hoje são ostentadas com orgulho.
Aquele Ouro Verde de Renato foi tricampeão estadual de amadores. Não do torneio oficial da Federação Gaúcha, que ainda existe, mas de um muito maior, sumido nas areias do tempo: a Copa Arizona, depois chamada Copa Dreher com a mudança de patrocinador, levantada pelo time do Assis Brasil em 1975, 1977 e 1980. A conquista estadual levava a decisões regionais e, mais tarde, nacionais. Hoje seria impensável, mas a Copa Arizona era um verdadeiro Campeonato Brasileiro de Amadores. As finais ocorriam todas em São Paulo, com viagem e hospedagem pagas pelas empresas que bancavam o torneio. “Infelizmente não conseguimos pegar um título brasileiro, mas ficamos perto”, lamenta o ex-jogador.
Das canchas, Renato Moraes carregou o apelido de Bobeira, uma gozação dos companheiros de time pelo fato de ele ser sempre quem passava mais tempo perdido em meio às rodas de bobo dos aquecimentos. Também levou a lembrança de conflitos costumeiros na várzea. Por isso, naquele jogo do São Luiz em Santa Bárbara do Sul, ele não se preocupou tanto quando a confusão estourou. Estava na parte mais ARRISCADA do Estádio José Antonio Dumoncel, o pavilhão social, único lugar onde havia torcedores da equipe da casa, e teria ficado por ali quando as coisas se tornaram mais pesadas e as escaramuças viraram massacre. Teve a sorte de estar acompanhado por dois sobrinhos pequenos e, querendo preservá-los, tê-los levado para fora do estádio. Enquanto os deixava com um amigo que conseguiria sair ileso, escapava da luta. A parcela de guerra reservada a Bobeira não foi a que aconteceu nas arquibancadas.
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O jogo foi bem controlado pela Associação Santa Bárbara. O 1 a 0 no placar do intervalo era considerado justo, e mudanças radicais precisariam ocorrer no vestiário do São Luiz se os ijuienses quisessem outro resultado. No centro do campo, enquanto as equipes regressavam, o árbitro Carlos Martins conversava com alguns jogadores do time local. Soltava elogios e dizia-lhes que estavam jogando muito futebol. Situação que certos ijuienses teriam tentado evitar.
Grillo sustenta que “o São Luiz mandou alguns representantes para subornar os jogadores, inclusive eu”. Recuperando-se de lesão, ele sequer entraria em campo na partida do dia 9 de dezembro. “Mesmo que jogasse, eu não ia aceitar”. Segundo Grillo, o tal emissário de Ijuí prosseguiu em seu intento, visitando Volnei Machado, que também não aceitou. Jair Galvão é outro que denuncia a sondagem: “durante a semana, eu fui procurado várias vezes por dirigentes do São Luiz, para que eu fizesse um pênalti, para que eu cometesse uma irregularidade que pudesse beneficiar o time deles”.
Os comandantes são-luizenses, claro, negam até a morte que a potencial mala preta tenha havido. Se existiu ou se alguém aceitou, da integridade de Jair Galvão não se pôde duvidar. Em Santa Bárbara, comentou-se em tom acusatório sobre o encontro dele, um ijuiense, com diretores do São Luiz, quase sentenciando que havia aceito a propina. E se Galvão não se vendera, o silêncio dos que ousaram lhe criticar só veio ao custo de um gol. O golaço que marcou num belo chute da entrada da área visitante aos 13 minutos do primeiro tempo. “Se eu fizesse uma sacanagem desse tipo, como eu ia poder olhar pros outros jogadores, todos pais de família, necessitando buscar o resultado positivo? Então não concordei, e Deus me premiou com a façanha de ter marcado o gol”.
Injuriados com o anúncio – e a confirmação – de que os de Ijuí invadiriam Santa Bárbara, os poucos torcedores da casa presentes no estádio exultaram com o tento. E as provocações até ali inocentes, que não haviam causado mais que desentendimentos inócuos, cresceram em gravidade. O pavilhão viu as hostilidades aumentarem. O desacordo verbal fez braços e pernas se movimentarem, e o tumulto foi consequência. Revoada de pássaros a prenunciar com susto o temporal que vem a seguir, uma pedra cortou o ar do Estádio José Antonio Dumoncel para pousar bem na cabeça de um torcedor local. O atirador permanece desconhecido, mas a procedência era certa: as gerais onde estavam os são-luizenses.
Aquela pedrada não começou tudo. Mas elevou a agitação ao patamar de batalha. O repórter da Rádio Blau Nunes, Paulo Mello, que não estava em serviço, talvez tenha sido a vítima do episódio que prestou de estopim: “eu levei a pedrada no começo da briga e não vi mais nada. Fui acordar meia hora depois no hospital, com onze pontos na cabeça. Só fiquei sabendo mais tarde do que aconteceu, pelo noticiário”. O berro anunciando que fora “o pessoal de Ijuí” que arremessara o paralelepípedo ecoou pelo pavilhão. Era como a senha para os bárbaros invadirem Roma. Ou os barbarenses defenderem Santa Bárbara, com todas as repetições cabíveis na frase. Os ijuienses que estavam no setor passaram a ser caçados. Nos outros três cantos do estádio, seus conterrâneos viram o BULÍCIO e partiram para defendê-los.
Muitos ouviam conselhos desse insensato SENHOR que é o ÁLCOOL. Durante toda a viagem, vários dos ocupantes dos ônibus locados pelo São Luiz despejaram nos seus DUTOS internos litros e litros de SUMOS etílicos. Festejavam por antecipação. E faziam uma ALQUIMIA explosiva em suas VÍSCERAS. “Tinha uma van especial com BARRICAS e TONÉIS de cachaça para distribuir fora do estádio. Assim eles tiveram coragem de fazer o que fizeram”, acusa Grillo. Diante da confusão, os ijuienses ameaçaram cruzar o campo, derrubando o alambrado com os próprios punhos. Outros, mais prevenidos, teriam cortado a cerca com alicates para poder chegar ao lado oposto. Sem segurança, os últimos resquícios de que ali houvera um jogo de futebol sumiram. A partida foi interrompida para não mais voltar. Era a CONTENDA e fim.
“Quando aquela avalanche de pessoas começou a se aproximar, era gente saltando de muros de seis metros de altura. O pessoal de Santa Bárbara pulando, correndo todo mundo embora”, recorda Renato Moraes, àquela altura fora do estádio para resguardar os sobrinhos. Vindo de Cruz Alta, o policiamento de menos de trinta homens era uma agulha no oceano de quase cinco mil espectadores. Encolheram-se dentro de campo, pateticamente, sem agir. Ouvindo o jogo pelo rádio, o então prefeito barbarense, José Antonio Dumoncel, que já dava nome ao estádio, cruzou os menos de dois quilômetros que separavam sua casa do campo de guerra. Tinha uma mensagem ao povo da cidade. Subiu às cabines de imprensa e diz ter pedido para que a população se recolhesse.
Enquanto Dumoncel falava nos microfones, Renato Moraes peludeava para reencontrar os cunhados, que haviam ficado no pavilhão. Dezenas de minutos se passaram na confusão até que pudessem se ver e definir a saída do estádio. As diferentes frequências radiofônicas que partiam do epicentro do motim levavam conteúdos diferentes aos lares da região. Algumas clamavam para que as cidades próximas enviassem reforço policial imediatamente para Santa Bárbara do Sul. Outras simplesmente davam espaço para que o dia ganhasse mais aparência de juízo final. “Nesse meio tempo, alguém disse nas rádios: ‘povo de Santa Bárbara, venham defender os seus’.”, narra Renato. Colunas esportivas de Ijuí chegaram a dizer que a ordem teria partido do próprio prefeito. “E Santa Bárbara veio. Quando a gente saiu, o exterior do estádio estava lotado de pessoas. E nós viramos minoria. A polícia ficou cuidando das crianças, das senhoras, e o resto que se dane. Lá fora era um PANDEMÔNIO”, continua Bobeira.
Rochas seguiram despencando dos céus com a intermitência das chuvas do verão que se aprochegava. Para os milhares de barbarenses que atenderam ao chamamento que alguém fizera nas cadeias de rádio, quem fosse de fora seria, a partir dali, inimigo. Carros com placa de Ijuí não podiam sair inteiros. Dos tapumes erguidos ao redor das construções nas cercanias do estádio vieram pedaços de pau excelentes para distribuir pancadas. Sem a vantagem numérica que tiveram dentro do José Antonio Dumoncel, os torcedores visitantes se dispersaram. Desorientados, muitos foram para o lado oposto ao qual deveriam, enfurnando-se mais e mais nas artérias das vilas de Santa Bárbara. Naquele fim de tarde, quem nunca pensara em dar um soco foi obrigado a tomar lições práticas de pugilismo.
Os que tinham automóveis ignoraram a existência de sinalizações, mãos e contramãos. Cada um fazia o seu trajeto. Os registros do caos ganharam algumas batidas de carros e quase-atropelamentos. Pelas ruas e vizinhanças da cidade, bolinhos de pessoas se formavam, com nuvens poeirentas subindo e fazendo lembrar as cenas de briga dos cartuns. Ameaçados pelos últimos ijuienses ainda organizados, os jogadores da Associação Santa Bárbara viveram minutos de tensão com o vestiário a ponto de ser arrombado. O aparecimento da população local abriu caminho para que os atletas se dirigissem ao ginásio situado ao lado do campo, onde ficaram até algo parecido com paz surgir. Não se feriram, diferentemente dos torcedores do São Luiz, perdidos numa cidade desconhecida, e dos habitantes desta que se envolveram na batalha. As CASUALIDADES incluem braços quebrados, tímpanos perfurados, retinas descoladas e dentes arrancados. Alguns dos visitantes, relata Dumoncel, só deixaram a cidade dias depois – ficaram no hospital de Santa Bárbara em coma alcoólico.
Os mais afortunados levaram apenas cortes como medalha de guerra. Renato Moraes foi atingido por uma pedra e precisou de um único ponto na cabeça. Mas viu de perto a possibilidade de carnificina: “eu até hoje fico pensando como a gente conseguiu sair vivo de lá”. Ele e os dois cunhados iniciaram uma imparável carreira sem bússola ou qualquer coisa que norteasse. Rolaram um barranco, não souberam como fazer para sair lá de baixo, e avistavam somente uma fileira de dezenas de pessoas que não desistiam de vir na sua direção. A certa altura foram parar numa vila ferroviária, e adentraram num bar achando que ali estariam seguros. Os perseguidores entraram junto. Do escarcéu de cadeiras, mesas, garrafas e copos ALADOS resultou um estabelecimento devastado e três ijuienses exaustos.
Seguiram dando socos e levando, apesar do cansaço. Com parte da roupa rasgada e os calçados já extraviados em algum instante da correria, Renato e os dois cunhados cogitavam a hipótese de sucumbir no momento em que “surgiu uma mão santa”. Por acaso, um amigo que residia em Santa Bárbara do Sul percebera os rostos conhecidos no meio da cizânia. Com uma pistola em punho, bandeou-se para ajudar. Encarando os outros barbarenses, sacou a arma e descarregou, cravejando a terra de chumbo:
– Agora eu atirei no chão.
Observado por olhos ainda furiosos, porém mais amedrontados, puxou um pente com calma e recarregou.
– Agora, infelizmente, eu vou ter que atirar em vocês.
Aqueles que queriam bater mudaram rapidamente de ideia. O suor escorrendo, a pele avermelhada pelo sangue e pela poeira, a tarde findando. Não era que estivessem fartos daquilo. Mas agora havia pólvora. Como houve em outros cantos da cidade, em explosões paridas pelas mãos dos barbarenses ou dos de fora. Após breve deliberação, permitiram que Renato e os companheiros escapassem. Dentre os algozes, um soltou a frase célebre:
– Deixa os três irem, já apanharam bastante.
“Nós saímos de lá como se fosse a Guerra dos Farrapos”, diz Renato. E assim foi por tantos rincões. Conforme as horas trouxeram o lusco-fusco e a escuridão, os de Ijuí se desvencilharam de suas pelejas e foram se evadindo de Santa Bárbara do Sul. Os ônibus com os vidros quebrados, esmigalhados por pedras. Carros com as latarias amassadas por pedaços de pau, faróis e janelas destruídos – e alguns deles com os quatro pneus furados. Talvez ainda não estivessem convencidos de que tudo havia ocorrido mesmo. Quiçá fossem ilusões. Real ou não, ainda estavam vivos. Ou pareciam vivos. E não estavam dispostos a deixar aquilo barato. Saíram da cidade pela única rota possível e, sem combinação prévia, encontraram-se num posto de gasolina perto dali. Dezenas, centenas de automóveis e ônibus estacionados. E um debate intenso. Estavam em bom número e devidamente aglutinados:
– Estamos reunidos. Vamos voltar todos juntos, sabendo onde queremos chegar: vamos voltar para matar.
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2 comentários:
Na expectativa da última parte!
Muito animal o relato, doido pra ler e ver os proximos videos!
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