Os dias em que uma torcida invadiu o terreno alheio, uma partida durou meio tempo, pistolas foram puxadas, o povo de uma cidade declarou guerra aos visitantes, um jogo foi remarcado duas vezes, retinas foram descoladas, ossos quebrados, carros e ônibus apedrejados, um estádio foi destruído, um time venceu sem marcar gols e a Segundona Gaúcha ganhou o mundo.
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A Praça da República estava completamente tomada pela população local. Aquela cena do centro de Ijuí repleto de pessoas fora prevista como a maior festa esportiva da cidade nas últimas décadas. Ao final daquele domingo, 9 de dezembro de 1990, a aglomeração representava a raiva aflita. Não se esperava a delegação do Esporte Clube São Luiz que poderia retornar de Santa Bárbara do Sul com a vaga na primeira divisão gaúcha depois de 13 anos: aguardavam-se os milhares de torcedores que haviam acompanhado o time, sem saber quais e quantos voltariam, para saudá-los como heróis de guerra.
O octogonal decisivo da Segundona de 1990 chegava à última rodada com uma definição de infarto. Uma semana antes, no dia 2, as arquibancadas do Estádio 19 de Outubro haviam sido palco das primeiras combinações de caravanas rumo a Santa Bárbara. Com gols de Paulo Gaúcho e Betinho, o São Luiz bateu o lanterna Três Passos por 2 a 0. Pelo rádio, os torcedores acompanhavam os outros jogos do dia para compreender o que seria das suas vidas na rodada seguinte. Ao mesmo tempo, o Internacional de Santa Maria destroçava o Avenida de Santa Cruz do Sul com uma goleada de 4 a 0, e o fraco Oriental de Três de Maio segurava o temível Guarani de Venâncio Aires num empate por 1 a 1.
Mas as notícias mais importantes para os ijuienses percorriam o espaço em ondas vindas desde os microfones postados na fronteira com o Uruguai. Lutando para não morrer abraçados quando a noite despencasse sobre Livramento, o Grêmio Santanense e a Associação Santa Bárbara de Futebol fizeram a única coisa que não podiam: empataram. O resultado eliminou os dois. E fez com que o entorpecente da histeria se apoderasse do ar respirado às margens do Rio das Águas Divinas, o Ijuí. O acesso do São Luiz, a ser decidido contra o desmotivado Santa Bárbara, era iminente: os outros dois concorrentes ainda vivos, o Inter e o Guarani, fariam um confronto direto na rodada final.
Num tempo em que a vitória valia dois pontos, a classificação após treze das catorze rodadas terem sido disputadas apontava o Guarani na liderança, somando 17 pontos. São Luiz e Inter-SM dividiam o segundo posto com 16 unidades. Grêmio Santanense, Santa Bárbara (ambos com 14), Avenida (10), Oriental (9) e Três Passos (8) chegavam sem chances. Ao São Luiz bastava vencer a sua partida para subir sem preocupações. Qualquer outro resultado forçava os ouvidos a esquentarem, colados nos radinhos a pilha. Sem vitória, seria necessário que, no mínimo, a igualdade em pontos com o Inter permanecesse: como os dois tinham o mesmo número de vitórias, o desempate aconteceria em dois jogos diretos, marcados para Ijuí e Santa Maria. Uma derrota em Santa Bárbara, no entanto, abria a perigosa possibilidade de um empate de compadres no jogo de Venâncio Aires, que faria ascender tanto Inter quanto Guarani.
Os são-luizenses não viam motivos para acreditar na hipótese mais negativa. Os ventos que sopravam em Ijuí eram mais otimistas naquele 1990 em que a cidade festejava seu centenário de fundação. O calendário fora salpicado de efemérides comemorativas. A Expoijuí, tradicional feira local, tivera atrações especiais lembrando a história do município, e diversos eventos se estenderam pelo ano. No mais significativo, o Monumento ao Imigrante foi inaugurado. No esporte, equipes amadoras de futebol e bolão trouxeram para a cidade troféus inéditos de competições regionais. A apoteose deveria ser o acesso do São Luiz, que desde 1986 havia retomado o departamento de futebol profissional. Ademais, São Luiz e Santa Bárbara haviam se enfrentado cinco vezes na temporada – e os barbarenses não tinham vencido nem uma vez.
Por todas as esquinas de Ijuí se comentava que algo inédito seria visto na decisão do dia 9: o São Luiz atuaria fora do seu estádio, mas com a voz dos alambrados quase que inteiramente a seu favor. Das sete outras cidades com times no octogonal, Santa Bárbara era a mais próxima de Ijuí, a 72 quilômetros de distância. Típicos dessas horas boas, até os torcedores que não costumam comparecer correram para aproveitar o momento. As excursões que vinham sendo montadas desde a tarde em que o São Luiz batia o TAC, no domingo anterior à decisão, viraram coisa séria durante a semana. Não havia quem estivesse sem saber o que se passaria em Santa Bárbara.
“Ijuí inteiro se mobilizou. Um falava, outro falava, todo mundo falou, todo mundo comentou”, conta Renato Moraes, professor de matemática e ex-jogador da várzea ijuiense, que foi ver o jogo. O elenco do São Luiz passou aqueles dias prévios à partida concentrado no Jardim Europa, um hotel nos ARRABALDES da zona urbana, ao lado de um bosque, onde os atletas experimentavam uma falsa tranquilidade que mais parecia a calmaria que precede as tormentas. Dentro da cidade, fervilhavam convites e anúncios de mais e mais maneiras de se dirigir a Santa Bárbara do Sul. Os periódicos anunciavam uma “Guerra Santa” por aquelas bandas, e conclamavam a população a “invadir” o município vizinho.
Estimava-se em mais de duzentos o número de carros particulares que rodariam pela estrada. O clube fretou 24 ônibus que viajaram lotados – não houve cobrança de passagem, bastava se inscrever para ir. Quem não conseguisse um desses lugares gratuitos, via ser aberta uma outra opção: uma união de TÁXIS partiria da Praça da República para levar torcedores a preços populares. “Acompanhando o esporte, eu não me lembro de a torcida de algum outro clube ter se dirigido assim para ver um jogo. Era muita gente”, recorda Clodoaci Amaral de Oliveira, vulgo Grillo, jogador do Santa Bárbara em 1990 e hoje presidente do Conselho Municipal de Desportos (CMD) daquela cidade.
Negrini, meia do São Luiz que poderia ter subido com o Brasil de Farroupilha um ano antes, mas ficara de fora das finais após o time perder pontos nos tribunais e a vaga cair no colo do Guarany de Cruz Alta, sentia o ambiente e definia o jogo de Santa Bárbara como “o mais importante” da sua vida. Mas as provocações ijuienses atingiram a alma dos barbarenses como as pedras, mais tarde, acertariam suas cabeças. Não era admissível que aquela TURBA chegasse lá, se apropriasse do estádio e quisesse vencer com facilidades. O primeiro sinal de resistência viera na tentativa de aumentar o preço dos ingressos, dos habituais 300 para “abusivos” 1 mil cruzeiros.
Segundo cálculo do professor de Economia Internacional da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí), Argemiro Luís Brum, o tal milhar de cruzeiros equivaleria a R$ 1,62 em valores atualizados. Mas o aumento foi considerado ilegal na época. Sem conter a investida ijuiense sobre as arquibancadas do Estádio Municipal José Antonio Dumoncel pelos preços, o Santa Bárbara esperava fazê-lo dentro de campo. Queria vencer, e não apenas porque as malas brancas com incentivos financeiros vieram tanto de Santa Maria quanto de Venâncio Aires, as duas terras interessadas naquele jogo.
“O que motivou bastante o nosso time foi o jogo do primeiro turno, em Ijuí”, afirma Jair Galvão, ijuiense que em 90 estava do outro lado, defendendo as cores do Santa Bárbara. No primeiro turno, os barbarenses perderam no 19 de Outubro por 1 a 0, encerrando a sua invencibilidade na fase final e acabando com a série de 802 minutos do goleiro Osvaldo sem sofrer gols. “Depois do jogo, muitos jogadores do São Luiz falaram que buscariam a classificação dentro de Santa Bárbara, porque nós éramos uma equipe que não tinha história, não tinha estrela. Mas nós éramos uma equipe muito competitiva, e nós tínhamos muita vergonha na cara. Não íamos deixar que time nenhum do Rio Grande do Sul estragasse a campanha que nós vínhamos fazendo”, prossegue Galvão. O Santa Bárbara perdera apenas sete dos 35 jogos que disputara naquela Segundona até ali.
No dia dos grandes jogos, cerca de cinco mil pessoas eram esperadas em cada um dos estádios onde as definições se dariam. O Edmundo Feix, em Venâncio Aires, tinha a normalidade de uma maioria local ocupando seus degraus para acompanhar o Guarani versus Inter-SM com arbitragem de Renato Marsiglia. O José Antonio Dumoncel, em Santa Bárbara, vinha com o absurdo para fazer o contraste: eram vermelhos e brancos os que se espalhavam pelos seus quatro cantos. Eram ijuienses. Só o pavilhão social do estádio barbarense tinha alguns aficionados locais – e mesmo lá eram enxergados visitantes. A proporção era de cinco torcedores de Ijuí para um apoiador do time da casa.
O jogo de Santa Bárbara não demorou muito a começar. Carlos Martins, o juiz escolhido pela FGF para comandar a partida, fora indicado pela própria diretoria são-luizense. Para os cartolas, o trio que ele compunha com Justiminiano Goulart e Adão Alípio Soares era o melhor do Rio Grande do Sul. No ano, eles haviam mediado três partidas do São Luiz. Três vitórias. Martins mandou que o pontapé inaugural fosse dado pouco depois das três e meia da tarde. Como sói acontecer em rodadas importantes da Segundona, Guarani e Inter-SM trataram de retardar o começo da sua partida para saber de antemão a figura pintada em Santa Bárbara.
Quando Jair Galvão marcou o gol que dava a derrota parcial ao São Luiz logo no 13º minuto de jogo, fazendo 1 a 0 para a Associação Santa Bárbara, sequer meia dúzia de patadas tinham sido desferidas sobre o campo de Venâncio Aires. O quadro de Ijuí, muito sólido fora de casa nas fases anteriores – nas duas primeiras etapas do campeonato, havia perdido só duas vezes em onze partidas longe do 19 de Outubro –, já experimentara três derrotas em seis rodadas como visitante na fase final. Naquele 9 de dezembro, o São Luiz não começava bem mais uma vez. Quem estava lá concorda que houve aguerrimento dos dois lados, botinadas convictas em busca da vitória. Mas os são-luizenses estavam inferiores. “Nós fizemos 1 a 0 no primeiro tempo ainda. E o time deles não ia empatar conosco nunca”, analisa Paulo Moisés Mello, locutor da Rádio Blau Nunes de Santa Bárbara do Sul, que no dia da partida estava de folga e assistia ao embate como espectador comum.
Favorecidos ambos pelo empate, Guarani e Internacional não fizeram grande esforço para lograr um triunfo. Um gol foi anotado de cada lado, e o interesse em tirar o 1 a 1 do marcador inexistiu por longos minutos. O São Luiz derrotado, como estava sendo, era o sonho de uma festa dupla na jornada de Venâncio Aires – e pelo que se comentava da partida de Santa Bárbara o destino final dela não seria outro. Mas, de repente, o Inter-SM se pôs a atacar com desespero visível. Num trovejar silencioso, a incerteza abocanhou as mentes, almas e corações que estavam no Edmundo Feix. Tudo o que até ali parecia correto já não era mais seguido por ninguém. Empurrado contra seu campo, o Guarani passou a defender o empate, que o garantiria na elite de qualquer maneira. Nem todos compreenderam na mesma hora o porquê de tal mudança de atitude, tão abruptamente, se ninguém anunciara gol do São Luiz.
A causa realmente não era aquela. Um gol ijuiense poderia ser mais duro, mas pelo menos deixaria claras as necessidades de cada time. O desconhecido, a falta de uma mínima ideia do que pode acontecer, é isso que enlouquece. Enquanto pediam para que seus jogadores corressem mais, os ocupantes de cada casamata seguravam o queixo preocupados. Já sabiam de um tumulto na outra partida, mas agora repassavam a nova informação que as rádios divulgavam:
– O jogo de Santa Bárbara do Sul não vai acabar.
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A reportagem sobre a Batalha de Santa Bárbara é uma promessa antiga do blog. Ei-la, depois de alguns meses de entrevistas com os personagens, pesquisas em jornais da época, consulta a vídeos arquivados e viagens para conhecer o cenário da guerra. O texto está dividido em quatro partes (as próximas serão publicadas nos dias 11, 15 e 19). Uma quinta postagem, no dia 20, trará algumas filmagens raríssimas feitas pela TV naquele jogo.
2 comentários:
Ótimo post, parabéns, mesmo!
Já lia o Futebesteirol na época da promessa do Post da Batalha de Santa Bárbara... muito bom, até fiquei na dúvida se esperava até o dia 19 ou 20, mas não resisti. Se tivesse uma agenda marcaria os dias dos próximos posts.
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