Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum. O cara acordava sem a menor noção do que era aquilo. Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum. Enquanto o sono durava, talvez o que viesse na cabeça fossem imagens de um martelo pregando algo numa tábua, um coração batendo, sei lá. Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum. Não é tarefa fácil entender o que se passa quando se desperta depois de uma longa noite rolando num colchão de palha, dormindo mais ou menos bem, mais ou menos mal. Mas assim como tu te perdes, tu entendes a situação rapidamente. Era o dia da final. Da nossa final. E o tum-tum era algum companheiro chutando bola ali na estrada de terra batida, pra passar esse tempo de ansiedade que é o tempo antes de uma decisão.
Decisão de várzea, fato, mas decisão. Um torcedor de grande clube da capital, um infeliz que só joga peladas de fim de semana, não entende a dimensão de um jogo desses. Pensam que por ser um campeonato amador não tem rivalidade ou, se tem, é coisa pouca. Não é. No Municipal, e especialmente no Grupo do Interior, o que jogávamos, o juiz já ia alertado. E antes de a bola rolar chamava os vinte e dois mais os reservas no centro do campo e lembrava: “todo mundo aqui é trabalhador, todo mundo tem família pra sustentar, vamos jogar em paz”. Na primeira chance que tinha, um beque levantava o atacante adversário com um carrinho voador e o discurso do soprador de apito ficava na lembrança. Dali em diante era pau.
O quê a mais dessa nossa várzea profissional é que ali ninguém quer saber de se poupar. Depois que eu parei de jogar o Municipal, que eu fui estudar e trabalhar, e o futebol virou coisa de tevê ou de peladas amistosas de sábado, sempre ouvia alguém gritando pra quem se exaltava: “calma que não é final de Copa do Mundo”. Na várzea todo jogo é mais que final de Copa do Mundo. Mesmo que o teu time esteja eliminado e com saldo de menos oitenta gols. Íamos jogar lá no rincão deles? Naquele campinho onde o que menos tem é grama? Íamos lá para vencer e para quebrar nas nossas finais mundiais semanais. E naquele domingo perdido, acordado por um tum-tum que não era de martelo e, embora também não fosse do coração, era bem compassado com a minha pulsação ansiosa, nós íamos jogar uma final de verdade.
Cacete, uma final. E uma final mais esperada por nós que a da Copa do Mundo, que tu vê na Globo e acabou; vencendo ali, seríamos os maiores por um ano inteiro. Tum-tum. Não cansava de chutar a bola, o amigo lá. Quem seria? Terminei de me vestir, peguei a chuteira (o uniforme era por conta da lavadeira-roupeira, um luxo que nós, mesmo varzeanos, não abríamos mão) e saí. Já estava o time inteiro me esperando:
– Ô, olha quem apareceu... finalmente! – repreendeu o técnico (mais pra um escalador do time do que um treinador de fato, mas enfim). – Quer nos fazer perder por veó?
– Qual é a moral dessa pressa? – devolvi, certo de que o jogo seria ali do lado de casa dali a algumas horas.
– Ué, não te avisaram? A final vai ser lá na cidade.
A várzea tem disso, também. Ou tinha, no meu tempo. Regulamentos que mudavam sem ninguém saber, critérios obscuros que apareciam e estranhamente favoreciam o time com um padrinho mais endinheirado, mudanças de campo. Era pra ser ali do lado de casa, mesmo, a final, mas os organizadores do Municipal decidiram que a final do Interior era interessante demais pra ser escondida no nosso distrito barrento. Marcaram para o maior campo da cidade, do grande clube daqui, que jogava o estadual – profissional.
Tum-tum. Dentro do ônibus, a quarenta por hora, sentindo a ondulação de cada pedra da estrada de chão, agora a batida era dos nossos ombros nas janelas – que ninguém abria por causa da poeira. A bola estava guardada em algum canto do bagageiro, batendo junto, mas essa já não se ouvia naquele ônibus apodrecido que parecia querer se desmanchar a cada solavanco mais brusco. Conforme os últimos restos de sono evaporavam dos meus ossos, a cantoria e as brincadeiras dos companheiros também diminuíam. Um ainda tentou soltar uma piada lá do fundo, não sei quem foi, mas as risadas foram abafadas. Parecia que nos dávamos conta do momento que se aproximava.
Era a final, caramba. A final do Interior. Um título. E a chance de ganhar o campeonato Municipal, depois, jogando contra o vencedor da Cidade. Quem sabe até disputar aquele torneio estadual, aquele patrocinado pela marca de cigarros e, sonhando um pouco mais alto, terminar lá em São Paulo nas finais nacionais da tal Copa Arizona? Mesmo que nem metade disso se realizasse, ganhar o troféu do Interior já seria um feito. Uma história para contar pros filhos, pros netos, uma medalhinha pra expor em casa e uma churrascada na comunidade para festejar a glória. Sim, porque, desde o surgimento do campeonato, lá em 1956, o nosso distrito nunca ganhou nada. O nosso time era mais daquelas coisas que são mantidas pela tradição, pois dependendo de resultados seria mais conveniente desistir.
Mas naquele torneio de 1973 a nossa equipe encaixou. Eu, de centromédio, marcava direito e ainda distribuía o jogo decentemente, os atacantes metiam os seus golzinhos e o nosso goleiro, diziam ser por obra de uma benzedeira, era o menos vazado. Tudo deu certo. O povo começou a acompanhar com entusiasmo, chegou a dar jogo com quase cem torcedores nos empurrando. Fomos pra final com a melhor campanha, ganhamos o direito de decidir no nosso campo e aí os caras me fazem aquela sacanagem de botar a partida na cidade... e o pior é que nem dava pra reclamar, porque todo mundo sonhava em jogar naquele campo.
O ruim foi pra quem nos apoiava, todo mundo pego de surpresa como eu, sem esperar aquela mudança e sem conseguir se deslocar. No estádio, distribuindo as nossas camisas verdes e calções brancos – a oito é minha, hein –, o ruído das arquibancadas era tímido. Uns vinte, trinta curiosos, quando muito, alguns jogadores dos times da cidade, e nada mais. Torcida, torcida de verdade, praticamente não tinha. Nem para nós, nem para os adversários. Só que eles nunca tiveram torcida, então era indiferente. Os prejudicados éramos nós.
Dizendo isso hoje parece desculpa de perdedor e, de fato, não me agrada focar nesse ponto. Porque o fiasco que nós fizemos naquele primeiro tempo não há falta de torcida que explique. Cada metade do jogo tinha quarenta minutos, e foi de quarenta minutos que precisamos para levar 3 a 0. Não vimos a cor da bola. Fomos massacrados. Eu furei numas duas ou três bolas, e nem o fato de ter salvado um gol certo em cima da linha compensou a nossa ruindade. Na frente a coisa não fluía, atrás era um desastre completo. A certa altura pensamos em botar os onze antes do meio de campo e ficar tocando a bola pra não piorar.
Mas a várzea, amigo, a várzea não é pra mariconada desse tipo. Não precisávamos de um treinador pra nos dar esporro no intervalo. Cada um puteava o outro, e assim a gente se organizava. Era um jogo pra quem tinha vergonha na cara. E quem tem vergonha na cara não leva 3 a 0 numa final e fica quieto. A tática que decidimos no intervalo foi, na ordem: ir para cima e tentar o empate ou, se não conseguíssemos, distribuir pontapés. Mais fácil de explicar uma goleada sofrida se tu tem vários expulsos.
Como nós éramos bons, porém, não precisamos apelar para a violência. Bastou apertar um pouquinho na marcação, ter mais atenção no passe, e também contar com um pouco da soberba deles, e o jogo em que éramos dominados virou completamente nosso. Em dez minutos fizemos dois gols. Na meia hora seguinte, empurramos eles cada vez mais contra a própria goleira. Acertamos outras duas na trave. Quem passou a distribuir pancada foram eles, que tiveram um expulso, e ameaçavam o juiz pedindo o final da partida. Nós não queríamos sem saber. Deviam ser uns trinta e nove do segundo tempo quando eu fiz aquele lançamento de quarenta metros pro nosso ponta-direita fintar um zagueiro deles e chutar a gol. Eu criei a jogada da bola do jogo. E o ponta errou. Podia ter chutado, podia ter passado, podia ter feito mil coisas objetivas, só não podia querer enfeitar o lance, tentando um segundo drible sobre o zagueiro já entortado, que se recuperou e mandou um bago nas nuvens, afastando o perigo.
Perdemos por 3 a 2. Fomos vices. Vices do Interior. Vice do Interior é a pior coisa que se pode ser, é o time que teve a chance de tocar o céu – um título, a classificação pra grande final Municipal – e caiu de cabeça no chão. Nós rachamos a testa no solo de barro duro. Mal se lembram dos campeões da várzea, que dirá dos vices. Só nós lembramos, pelos anos seguintes, da nossa campanha e do nosso título que escapou por bobeira, por não jogarmos no nosso campo, por duas bolas na trave, por uma finta mal dada, por azar. Nunca mais conseguimos chegar tão longe, e nenhuma outra equipe que vestiu aquela camisa verde foi capaz de igualar o nosso vice-campeonato.
Já faz trinta e cinco anos. Trinta e cinco anos, cara! O nosso time, o esquadrão inesquecível, ao menos para nós que fizemos parte daquilo, não durou nem doze meses. Uns foram trabalhar, cuidar da família, que a várzea não dá dinheiro, ou dá bem pouco, outros simplesmente se cansaram. Alguns permaneceram, como eu, mas aí já era um retalho da nossa formação de gala. Após dois anos eu também saí, cuidar dos estudos. Teve gente daquele time que já morreu, tem outros que estão com a vida feita, com filhos e netos até, e nenhum chegou a vingar no futebol. Da mesma forma, nunca mais nos reunimos. Fomos os quase-heróis de ninguém, praticamente sem testemunhas, numa tarde ensolarada de domingo, de um domingo que, para nós, começou com ansiedade, com o coração batendo acelerado, com uma bola quicando na estrada de chão para fazer o tempo passar mais rápido e a hora da decisão chegar.
Fiquei sabendo que o nosso time fez uma parceria neste ano, juntou forças com outro clube amador, e passei a acompanhar por cima. Ao contrário de nós, eles não estavam sozinhos. Trinta e cinco anos depois, com torcida, com dois clubes jogando por um, os resultados voltaram a ser bons como aqueles nossos – e até melhores. Superando a nossa campanha, a equipe deste ano conquistou no fim de semana passado, lá no nosso campo, o primeiro título do Interior da história do distrito. Agora vão para a inédita final Municipal do torneio amador, contra o campeão da zona urbana, no estádio da cidade. Desta vez, não será pouco o público. O tum-tum deste domingo decisivo, de uma decisão ainda maior do que a que perdemos, será também dos tambores da nossa torcida.
2 comentários:
* Com exceção da verídica campanha vice-campeã de 1973, nada da narrativa corresponde, necessariamente, à realidade.
O Juventude do Barreiro/SER Amoré venceu o Sul América, campeão da Cidade, no domingo, por 3-0, e conquistou o Municipal de Ijuí 2008.
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