sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Preocupados e indiferentes

TORRES - Você poderia estar em qualquer lugar do mundo. Fazendo qualquer coisa. Fazendo nada. Você poderia estar inerte. Jogando-se de uma ponte amarrado por um elástico. Descendo o Grand Canyon por uma trilha mortífera. Você poderia estar em casa, sentado na frente da TV. Ou escutando música. Olhando para o teto sem preocupação com o amanhã. Você poderia estar trabalhando. Investindo na bolsa e perdendo tudo. Arriscando a sorte num cassino e, também, perdendo tudo. Você poderia estar jogando pôquer e acreditando no seu par de dois. Lendo um artigo sobre física quântica. Ou escrevendo ele.

Quando dentro de um estádio de futebol, as pessoas não costumam admirar o seu entorno, refletir sobre a vida de uma cidade que resiste e avança, de forma poderosa e irreversível. Não pensam na indiferença da maior parte dessa mesma cidade ao universo paralelo vivido dentro daquele quadrilátero gramado perdido no centro ou no subúrbio da zona urbana, onde vinte e dois jogadores, uma bola e três mediadores determinam o humor dos que não estão indiferentes. Você lá dentro encara com incredulidade, mas não é inverossímil que, com tantas coisas para se fazer, com tantos lugares para se ir, com o tempo escasso exigindo respostas imediatas porque para cada um que não dá, vêm dois com a réplica na ponta da língua, haja tantas pessoas que não dão a mínima para o fato de que é a final do campeonato e você tem um pênalti para bater na série de alternadas.

O último pênalti.

Você não pensa em todas essas coisas. Sabe, porém, que quando aquela bola tocar as redes ou subir nos ares como se quisesse alcançar as nuvens, algo terá mudado. É para os que se preocupam com aquilo que você joga. Se aquela bola tocar as redes, os que se preocupam e estão do seu lado lhe tratarão como o caudilho libertador de um povo, o responsável pela alegria incontida de milhões, pela desilusão de outros tantos, estes os que não lhe apóiam. Se ela subir, ou for para o lado, ou defendida pelo homem embaixo dos paus, viverá o oposto. E aí você não sabe por quanto tempo. Alguns minutos, o adiamento da glória, garantida na série seguinte de penais. A vida inteira, se a sorte das próximas cobranças pender para os adversários.

É pela condenação perpétua como um pária que você treme. Requenta a memória do filme do ano, o discurso batido das entrevistas, o “abdicamos de muita coisa para chegar até aqui e merecemos esse título”, o semblante da mãe quando da última visita, afirmando que tudo daria certo, a palestra do treinador deixando as táticas de lado e citando o Sun Tzu, as vésperas das partidas transcorridas em concentrações animadas ou silenciosas, dependendo da fase. Tudo aquilo, um prólogo para isso. Quanto sofrimento inútil se o título não vier. Quantos dias de festa se a taça vier, redentora, absolvendo todos os erros, perdoando todos os culpados, fazendo justiça a todos os esforçados.

Dezembro. O mês do calor e do fim da temporada, o resumo de tudo o que foi e, no futuro, a lembrança do que poderia ter sido se aquela bola tivesse tomado um rumo diferente. A lembrança eterna dos que te apóiam e dos que, nestes instantes de desespero, desejam a tua desgraça. É você que dá o rumo a essa bola. É você o centro das atenções dos que querem saber daquela partida, da definição da taça, do último título da temporada, da redenção dos veteranos, da alegria dos jovens, da vibração generalizada de todos do clube. Se fizer, o heroísmo e a medalha. Se errar, mais uma cobrança para cada lado, a dúvida, a incerteza.

Acordado naquela manhã, umas oito horas do início da partida, olhando para um mamão que não despertava qualquer interesse, você já pensava na remota possibilidade de se ver naquela situação. Daquelas coisas que passam rapidamente na cabeça e logo se vão. Não, não sou cobrador de pênaltis, não vai sobrar pra mim. Tem noventa minutos antes, tem cinco chutadores pra cada time se a partida terminar empatada e tiver que ir pros penais, a minha tarefa é cuidar do que acontecer com a bola rolando. Nem treinei pênaltis essa semana, só duas ou três cobranças. E não vai acontecer. Vamos fazer dois a zero no tempo normal.

Mas vocês nunca fizeram dois a zero e os noventa minutos, os dez cobradores, as vaias enfurecidas a cada lance do adversário e os aplausos da torcida para cada escanteio que vocês cavavam, vieram sem desmanchar o empate. E você, que poderia estar fazendo qualquer coisa, poderia estar em qualquer lugar do mundo, poderia nem gostar de futebol se não fosse aquele tio que deu uma número cinco de presente de Natal quando você tinha quatro anos, precisava agora bater um pênalti que não ia acontecer, não podia ocorrer, não seria necessário, mas foi.

Posicionando a bola na marca penal, um borrão branco na grama verde, um borrão que deveria ser circular mas está quase que um ovo, você pensa naquela bola primordial da sua vida, a bola do Natal de vinte anos atrás, e tem na mente uma imagem como que vista com o canto do olho em que se pega recordando como o destino foi alterado depois de tocar aquela esfera meio pesada recoberta de couro. Quantas famílias de torcedores aguardam aquele pênalti para saber se o futebol daria ao seu Natal uma alegria a mais ou a menos, uma alegria que depende de ti, da tua sorte e tranqüilidade, mas também depende do goleiro e do que ele resolver fazer.

Você olha para o goleiro, que não olha para ti. Dizem que pênalti é o melhor momento para quem tem que guardar uma meta, pois não há como ser vilão, mas ao ver aquele camisa um virado de costas para o campo, agarrando as próprias redes, fazendo mandinga, você percebe que a aflição dele não é diferente da tua. Porque se a missão dele parece mais fácil, o que vocês têm a perder é quase a mesma coisa. Tirando a vilania, o heroísmo, tudo se resume ao título e ao vice, a um ano sonhando por algo que não veio e à recompensa pelo trabalho feito. Ele deve ter se esforçado tanto quanto você, ele vai sofrer muito se perder, mas isso não importa agora. Você é um profissional, o responsável pela cobrança definitiva, o cara que pensa em tudo o que poderia estar fazendo para não estar ali mas está ali e não pode ficar com peninha de um adversário que, se merece algo, não merece mais que o teu time.

Então você parte. Com a cabeça muito carregada, porém menos que o pé. Manda um tiro forte, para enterrar o goleiro no gol – no meio do gol. Ele sai para a esquerda. Gol, gol, gooooooooooooooooooollll! O gol do título. Você agora corre, você olha para a torcida e para as bandeiras e ouve os gritos e vê as luzes e vê os fogos e corre para os companheiros e, esperando que eles venham ao seu encontro, vê que as suas caras cheias de felicidade mudam de tom rapidamente, tomadas pela raiva. E a torcida que vibrava silencia e a que silenciava reacende os cânticos numa esperança que voltou de súbito.

O juiz mandou repetir.



Lá fora, na cidade, a vida continua andando. O cotidiano dos indiferentes engolindo o teu drama invisível.

Nenhum comentário: