sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Momentos em La Plata

“Foi a única vez na vida que tive medo. Não medo de jogar, que nunca me aconteceu: medo de morrer mesmo”. Quem disse isso foi o ex-zagueiro uruguaio Hugo De León (à direita na foto), três títulos de Libertadores e dois de Mundial nas costas, um vivido em guerras futebolísticas. O jogo que fez De León temer ocorreu em La Plata, no 8 de julho de 1983, pelo triangular semifinal da Libertadores daquele ano. O Grêmio do oriental foi duelar com o Estudiantes num clima de guerra real – os argentinos, mordidos pela Guerra das Malvinas, queriam usar o futebol para se vingar do pouso de um avião inglês na base aérea de Canoas, região da Grande Porto Alegre, dias antes da partida.

Com a complacência da portaria do hotel, telefonemas ameaçadores chegavam à concentração gaúcha: van a murir todos ustedes. Antes de a bola rolar, no meio de campo, o lateral Camino já levava cartão amarelo por agredir com um chute o gremista Caio. Durante a partida, torcedores atiraram paus e pedras no gramado, e usaram suas bandeiras como lanças através do alambrado. Um fotógrafo invadiu o campo e deu um soco no goleiro Mazarópi. O Estudiantes teve quatro expulsos. O Grêmio abriu o placar de 1 a 3. Mas as ameaças... Vencer era morrer, diziam os torcedores argentinos. O Grêmio acreditou e deixou o quadro da casa empatar. Até fez um quarto gol depois, anulado erroneamente pela arbitragem, mas nem reclamou: “quando o juiz anulou o gol do Osvaldo, nós só faltamos vibrar”, disse Mazarópi; “aquilo era um pesadelo”, concordou De León. O Grêmio terminaria classificado e sairia daquela Libertadores como campeão.

Ontem à noite o Estudiantes derrotou o Argentinos Juniors por 1 a 0, confirmando sua passagem à final da Copa Sul-Americana de 2008. Na semana que vem, enfrentará em casa o Internacional, rival do Grêmio, pela partida de ida da decisão. Os tempos são outros, nem o estádio será o mesmo. Sai o potrero Jorge Luis Hirschi, entra o moderno estádio Ciudad de La Plata. Violência como aquela não se verá, mas a influência da torcida do Estudiantes sobre a força do seu time continua valendo. Sem mais enrolações, fiquemos com um texto da época, escrito por um colorado, sobre o ambiente que, 25 anos mais tarde, aguarda o Inter.

Incrível
Por Luis Fernando Veríssimo
(publicado em 14/07/1983, seis dias depois da Batalha de La Plata)

Por uma fatalidade geográfica, temos com a Argentina, além do clima e de uma fronteira em comum, certas afinidades platinas. Não faz muito tempo que a “ele erre uno, ele erre dos, Rádio El Mundo de Buenos Aires” era mais ouvida aqui do que qualquer rádio nacional e não havia cabaré que não tivesse sua orquestra típica para intercalar com seu “jazz”. Uma linha de silêncio em memória dos cabarés e de suas orquestras típicas.

Mas apesar de sermos um pouco argentinos, a verdade é que nunca compreendemos, mais do que o resto do mundo, os argentinos. Pelo contrário, a proximidade só aumenta nossa perplexidade. Pois se Buenos Aires é a cidade européia mais próxima da nossa fronteira, como explicar que aquela capital de cultura e urbanidade também seja cenário de tanto primitivismo, não só no futebol? Como conciliar a idéia de um povo politizado, britânico, de blazer, com aqueles surtos passionais? Quanto mais conhecemos a Argentina, mais difícil fica a explicação. Desconfia-se que nem os argentinos se explicam.

Pra mim, mais incrível do que o Estudiantes virar o jogo e empatar com sete contra 11 foi aquela torcida que – seu time perdendo de três a um e com quatro jogadores a menos – em vez de ir para casa como pessoas sensatas, continuou no lugar, pulando e gritando como antes. Mais do que antes. A torcida não tinha dúvidas de que sete argentinos podiam virar o jogo e empatar contra 11. Qualquer outra torcida teria sucumbido, senão ao desânimo então ao senso do ridículo.

Os argentinos vivem perigosamente à beira do ridículo. Veja o tango. Todo o tango está sempre arriscado a se transformar na sua própria paródia. Está sempre à beira do excesso. Raramente passa para o excesso, ou então passa e a gente descobre que o excesso também tem o seu valor, que o dramalhão tem a sua grandeza e que o “bom gosto” pode ser uma limitação. Um jogo como Estudiantes x Grêmio, transformado em literatura, seria condenado como ingênuo e inverossímil. Um pouco argentino demais. Só que os argentinos ainda acreditam nas suas fantasias. É a sua arrogância. De vez em quando dá Malvinas. De vez em quando dá certo, e aí nós é que passamos por ridículos. O Grêmio foi sensato, jogou com extremo bom gosto e empatou. Os argentinos apostaram no impossível e o impossível aconteceu. A fantasia sobreviverá por mais algumas gerações. E nós continuaremos sem compreender.

3 comentários:

Anônimo disse...

O Estudiantes é uma equipe admirável e esse jogo que o Grêmio vacilou(deu uma de Náutico!!) só engrandece sua história...e parece que a alma platense permanece no coração de toda equipe pincharrata, no episódio de 83, nas Libertadores de 68,69,70, na decisão do mundial contra o Milan, na Libertadores de 2006, quando virou 4-3 sobre o Alianza Lima depois de perder a 0-3, no jogo-desempate contra o Boca recentemente...enfim, vários exemplos.
O texto foi PERFEITO no que disse às "fantasias argentinas"...eu assisti uma reportagem sobre a Copa de 78, e um jornalista argentino disse que um defeito desse povo é "viver muito tempo fora da realidade".
Sinceramente, isso de temer pela vida ao jogar por lá me parece MUITO exagero...nessa mesma repotagem, foi dito que um zagueiro holandês tinha medo de vencer a Copa de 78...convenhamos, essa copa ocorreu numa situação bem mais intimidadora...só que no último minuto de jogo, a Holanda meteu uma bola no pau. Se tivesse entrado, até hoje ninguém estaria falando de Quiroga, Videla, Batalha de Rosário, etc...e sim de Happel, Neeskens, Rep e outros.

Anônimo disse...

Quanto ao torneio, até eu previ essa final...também, duas equipes sossegadas no torneio nacional e que estão levando a sério a disputa. Inter tem ligeiro favoritismo, mas final é final...a favor do Inter, decisão no Beira-Rio.

Anônimo disse...

Mas o Grêmio não vacilou. O Grêmio deixou os caras empatarem o jogo. A crônica do Verissimo é boa retoricamente, mas em termos históricos não soube reconstruir o que houve. Ele está perto do imaginário da torcida do Estudiantes sobre o jogo e não perto do que ocorreu naquele dia.