segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Rápido e driblador

“Esse guri vai fazer fama por aqui. Ele tem potencial. Escreve o que eu te digo: vai ser o nosso melhor jogador.” Essas palavras martelavam a cabeça do treinador na semana anterior à partida decisiva. O time chegara ali invicto no quadrangular final. Desafortunadamente, havia fraquejado diante do lanterna, em empates por 0-0 e 3-3, estando ao final da quinta rodada com empates demais: três, contra apenas duas vitórias, o que lhes dava nove pontos, quantidade nada tranqüilizadora com um vice-líder tendo oito.

Na tarde daquele domingo, jogariam frente ao terceiro colocado que, com seus seis pontos, tinha remotas possibilidades de ser campeão, precisando de uma combinação absurda de resultados para salvar seis gols de saldo. Mas isso era o de menos: o terceiro colocado é rival à morte dos líderes, e se contenta em tirar a taça do outro clube da cidade. Em dias assim, prometem sangue, e costumam cumprir. Servindo de contrapeso ao cenário dramático do dérbi, o vice entraria para a sua partida só precisando superar o fraco lanterna – um time sem vitória e dono de três pontos.

“Dois ganhos contra nós”, maldizia-se o técnico, pensando na classificação. Nunca estivera tão perto de um título, ele que tantas vezes fora tachado de incompetente. Agora dependia apenas de si, e por isso sentia o peito apertado, achando que também nunca estivera tão distante de uma conquista. Envergonhava-se de pensar assim. Procurava consolo em repetidas afirmações de que não, não é um incompetente, mas olhava para o jornal e via a tabela naquela situação: qualquer ponto somado pelo vice valeria o título a estes, em caso de derrota do seu time, em função do saldo de gols.

Lembrava-se dos dois empates consecutivos com o lanterna, jogos colocados na terceira e quarta rodadas pela tabela espelhada. No primeiro, fora de casa, um retrancão deles segurou o placar em branco. Na volta, escalou uma equipe ultra-ofensiva para compensar e foi surpreendido: chegou ao intervalo levando dois gols a zero nas costas e só pôde recuperar um empate por três tentos na etapa final. A imprensa não teve piedade, os torcedores passaram a temer ver seu time como cavalo paraguaio e, naquele clima tenso, o grupo permaneceu anormalmente sereno. Pela quinta rodada, fora de casa e contra o então líder, venceram por 1-2 e assumiram a primeira posição – o treinador afirmou, em júbilo, que ninguém mais lhes tiraria essa taça.

Seis dias depois, à véspera do domingo da sua vida, arrependia-se amargamente dessa confiança. Vieram os problemas, os problemas. O meio de campo que já estaria abalado sem o camisa 10, suspenso após o terceiro cartão amarelo, quedou totalmente destroçado na quinta-feira, quando o outro homem da zona abandonou o clube à traição, seduzido por dólares árabes. Não fazia quatro meses que beijava o escudo e, em plena fase decisiva, quis garantir a saúde financeira dos netos.

Fins de temporada, departamento médico com lotação considerável, faltavam no elenco nomes à altura para compensar aquelas ausências. Estava óbvio que nada à disposição daria uma força extra. Havia, entretanto, aquele guri. “Esse guri tem potencial”, voltava a ecoar a frase do olheiro. Seria mesmo?, pensava o treinador, olhando para as anotações a respeito de Alex – Alex Feitosa Soares dos Santos, como o próprio se apresentara para a secretária, rindo maliciosamente, no dia de sua admissão. Disputara até ali míseras três partidas no quadro de juniores do clube, a Academia, na saudosa denominação dada pelos torcedores mais velhos. Encantou a todos, é verdade. Deu dribles rápidos, marcou impressionantes oito gols. Mostrou também uma máscara irritante, que seu artístico futebol transfigurara em eufemista “prova de autoconfiança”.

Autoconfiança... era isso que faltava ao treinador. Valia a pena arriscar queimar o jogador para tentar o inusitado? Se o título fosse perdido naturalmente, ele talvez já não recebesse mais chances em clubes grandes. Se o título fosse perdido escalando um atleta sem qualquer experiência profissional, daria aos seus fiéis críticos um argumento forte. Podia ganhar o título, claro, e virar o gênio, porém essa hipótese era insanidade – tentava botar isso na cabeça. As chances de tudo dar errado e passar um vexame eram grandes demais. Por outro lado, que história era aquela de ficar numa meninice de temer tudo – ora, para ganhar finalmente algo importante não seria preciso ousar? Deixar de ser um fraco e honrar aquilo que carrega no meio das pernas?

Emborcou a garrafa de vinho que tinha ao seu lado, cortesia do dono do hotel, um aficionado do clube. Já deitado na cama dura do quarto – mesmo os de suítes presidenciais eram colchões recheados de pedras numa concentração –, puxou o celular e ligou para a Academia. Em meia hora, entrando pelos fundos, carregado num furgão identificado com uma fornecedora de alimentos, chegava ao hotel, incógnito, Alex Feitosa. Cruzou aquelas portas certo de que teria a noite mais longa da sua vida. Falou com o treinador apenas para cumprimentá-lo, nada mais, mas pressentia o que estava sendo arquitetado: ele seria a surpresa do dia seguinte.

Passou a madrugada rolando na cama, suando frio. Olhava o relógio espantado com a lerdeza com que as horas passavam. Foi ao banheiro, sentou-se nu sob a ducha e deixou a água correr. Aquilo era tranqüilizador. Fechava os olhos, ouvia o som das gotas batendo nos azulejos, e repassava mentalmente seu repertório de jogadas, lances de efeito. Permitiu-se levar pelos sonhos. Poderia fazer à la Robinho com suas pedaladas e entrar para a história com uma linda jogada que valesse título, por que não? Ficou meio que em transe, voltou para cama e em certo momento ultrapassou a tênue linha que o separava da inconsciência. Adormeceu. Pouco depois, acordou, tremendo, não de frio. E assim passou, assombrado, as horas seguintes. Dormia, acordava num susto, pegava no sono outra vez. Ansioso.

...

As rádios e tevês já estavam desesperadas. A vinte minutos do início da partida e nada de divulgar a escalação. No discurso de emissoras concorrentes, um consenso: o líder do quadrangular estava dando um mau exemplo, seria multado com justiça – onde já se vira desrespeitar um regulamento, a esportividade, por um troféu? Eles não precisavam daquilo. Roendo as unhas, tensos nas suas casas e nos bares, os torcedores praguejavam contra aqueles comentaristas. Só podiam ser torcedores do outro time. Ora, valia o título, pro inferno com as multas!

Pro inferno com as multas. Dentro do vestiário, dirigentes, jogadores, médicos e massagistas, toda a fauna futebolística não pensava em dinheiro. Não naquele dia, naquela hora de decisão. Olhavam para o treinador, que encerrava a sua palestra. As últimas palavras sumiram no ar engolidas por entusiasmados gritos de guerra, enquanto o comandante aproximava-se lentamente de Alex.

– Confio em ti, meu guri. Tá pronto pra isso? Se não estiver fala agora. Não posso ter um cagão no time.
– Tô, sim, professor. Vô acabá queles.

A resposta não era nova. Em seus anos rodando por clubes do interior ou das capitais, concluíra que em dois momentos pontuais a imagem era igual: jogador sempre dá resposta afirmativa quando perguntado se entendeu a tática e nem sendo o pior do time diz que está com medo sob insinuações. Também provara que eles costumavam fazer tudo diferente do planejado e que não era incomum os provocados amarelarem, mas esperava que naquele domingo tudo desse certo. Era o dia deles. “Pensamento positivo, homem”.

Pontualmente às quatro da tarde o time entrou em campo. Sem divulgar a escalação previamente. A formação não fugia do habitual, com as alterações esperadas, todos só queriam saber quem era aquele magrelo vestindo a 10. A grossa maioria dos torcedores não acompanhava os juniores, bem como uma parte importante da imprensa especializada, que achou por bem lançar chutes estúpidos no ar. O nome de Alex caiu na boca do povo graças à ação dos repórteres, e logo as informações fluíam como deveriam. Júnior, três jogos, oito gols. Rápido e driblador. “Em que fogueira botaram o garoto, mas parece ser bom”, era tudo o que tinha a dizer o comentarista que há pouco dava palpites furados sobre a identidade do 10.

Para dar as primeiras credenciais, o Alex precisou de vinte segundos. Os rivais deram a saída de bola, o centroavante do líder roubou, tocou para o lateral, que se encaminhou ao ataque enquanto os companheiros avançavam. Lançou. Alex teve o esférico nos pés à frente da área, pela direita, e desferiu um tiro com efeito, de trajetória primeiro reta, depois abruptamente curva para longe da trave. Serviu para ganhar os primeiros aplausos, diluídos em breve pela notícia de que o vice-líder havia aberto o placar no outro confronto, tomando o topo da classificação provisoriamente.

Obrigado a vencer, o líder-antes-da-rodada-convertido-em-vice-campeão-pelos-resultados-de-momento ensaiou uma pressão sem maior ordem. Os adversários, embora prometessem dar o sangue, ainda pareciam alheios ao duelo e facilitavam o crescimento na base do vamo que vamo. Aos poucos, o tímido camisa 10 foi se soltando. Tentou um chapéu no meio de campo. Falhou. Tentou uma meia-lua, aí acertou. Pegou outro passe depois e, sem querer, conseguiu dar o chapéu antes fracassado, levantando a torcida que irrompeu em palmas. Mas logo o aplauso virou irritação. “Passa essa bola!”, “vai pro gol!”. Alex errava os passes. E os chutes. Para isso a calibragem ideal não viera. Mas para os dribles... aos trinta e sete do segundo tempo, recebeu um lançamento pela linha de fundo, de costas para o campo, encarando a bandeirinha de escanteio. Com o canto do olho, percebeu a aproximação de um marcador junto à lateral. Calculou que o próximo movimento deveria ser um giro para o outro lado, ficando de frente para a área.

A jamanta barbuda e desgovernada que vinha correndo da própria área ele só percebeu quando sentiu a dor. Por trás, um zagueiro mau dos terceiros colocados fez questão de lembrar aos companheiros que aquilo era um clássico e as juras de sangue deveriam ser cumpridas. Chorando, sem conseguir levantar depois do carrinho, o camisa 10 foi levado imediatamente ao hospital e não viu o seu time perder por 1-0. Quando os primeiros foguetes estouraram nos céus da cidade, não dos seus torcedores, mas dos rivais, alegres de terem tirado o título dos antagonistas e dado ao ex-segundo colocado, que terminou vencendo o lanterna por fáceis 0-3, ele estava recebendo os primeiros pinos de titânio na sua perna arrebentada.

O treinador foi ameaçado de morte pelos torcedores mais fanáticos e mandado embora poucas horas depois da rodada fatídica. Não conseguiram fazer mais que isso para apagar o drama, os catatônicos dirigentes. Endividado até o pescoço por ter embarcado na aventura de um título que não veio, o clube cambaleou nas temporadas seguintes e foi rebaixado dois anos depois. Alex demorou dezoito meses para se recuperar fisicamente. O psicológico seguiu sem resolução: passou a temer os dribles, estragava jogadas para fugir deles.

Sem eles, mostrou que sua bola não era tão grande como aparentava na base. Encerrou seus dias vestindo a camisa do Ipiranga de Sarandi. No banco.

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