Os jogadores italianos se abraçavam na beira do campo, em frente à sua casamata, rindo e se congratulando pelo título certo. Trajando os abrigos da azzurra, um ITALIA garrafal escrito no peito, aguardavam o apito final que lhes daria o troféu do continente após trinta e dois anos. O time vencia a França desde os 55 minutos, gol de Delvecchio, e agora restavam apenas três ou quatro para a confirmação da conquista. Os franceses tinham a bola no seu canto defensivo, longe de tudo. Barthez foi cobrar o tiro indireto do impedimento, o juiz deveria apitar quando o esférico voasse sobre o meio de campo. Não apitou. E a Itália não afastou aquele lance que começava a se construir perigosamente quando a bola foi dominada no seu campo. A seguir, a sorte da noite mudaria de lado. E os jogadores, aqueles da beira do campo, passariam de exultantes a cabisbaixos. Nos acréscimos, a França empataria o jogo para levar à prorrogação, e então remontaria a decisão diante de um adversário destroçado emocionalmente.
O final da Eurocopa de 2000, agônico e de consagração para os franceses, começou a ser construído menos de dois meses após a sua recente glória anterior. Em 5 de setembro de 1998, ainda vibrando com a conquista sobre o Brasil em julho, os de Zidane foram à Islândia dar início à sua nova campanha – empataram com a seleção local por 1-1. Aos franceses, ao continente, aquele dia marcou os primeiros encontros que desembocariam em outro torneio continental marcado por algo inédito: em 2000, pela primeira vez, a sede das etapas finais seria dividida em dois países – Bélgica e Holanda. Ter dois países com vaga garantida por serem os anfitriões e novos participantes (a Iugoslávia retornou após sua suspensão nas duas edições anteriores, ingressando também os quadros da Bósnia-Herzegovina e de Andorra, cuja federação nacional fora criada há pouco) causou sensíveis mudanças no sistema de classificação: seriam nove grupos, divididos em cinco pentagonais e quatro hexagonais; o vencedor de cada chave passaria de fase, assim como o melhor segundo no geral; todos os outros vice-campeões de grupo, que seriam oito, jogariam playoffs para determinar as quatro últimas vagas.
No torneio belga-holandês, algo aconteceu. Talvez seja a água daqueles países, talvez fosse a inconsistência das equipes que começassem os jogos liderando os placares, ou quiçá doses cavalares de raça por aqueles que estavam atrás na contagem. Certo é que o número de remontadas, fosse na tabela de classificação, fosse nos jogos, superou de longe tudo o que se vira até então. Com exceção do Grupo D, em que Holanda (9 pontos) e França (6), obtiveram a vaga depois das duas primeiras rodadas, em que venceram República Tcheca (3 pontos) e Dinamarca (0) logo de cara, todos os outros tiveram disputas lutadas. No Grupo A, enquanto Portugal patrolou todo mundo e passou com 9 pontos, e a Alemanha decepcionou terrivelmente, sendo lanterna com 1, houve uma Romênia saindo das posições baixas para, na última rodada, ir ao intervalo levando 1-2 da favorita Inglaterra, voltar a campo disposta à virada, empatando, e conseguir completar as ambições graças a um tento de pênalti aos 89 minutos de jogo: no fim, 3-2 para os romenos na partida, 4 a 3 na pontuação. A história foi parecida também na chave B, em que a Itália fez 9 pontos, a Suécia ficou com 1, e a Turquia reagiu espetacularmente (perdeu na primeira rodada, empatou na segunda, e venceu os concorrentes diretos na terceira) para desbancar os locais belgas, somando 4 pontos contra 3.
Nada daquela primeira fase, entretanto, conseguiu chegar perto do Grupo C. A chave já havia sido aberta com uma formidável reação da Iugoslávia que, levando 0-3 da Eslovênia (um rival regional, país que havia se desmembrado dos próprios iugoslavos) e em inferioridade numérica, fez três gols em seis minutos (Milosevic aos 67, Drulovic aos 70, e outra vez Milosevic, aos 73) para empatar num 3-3. Com o avanço dos jogos, a última rodada chegava trazendo os iugoslavos com 4 pontos, a Noruega de vice-líder, com 3, a Espanha também com 3 mas em inferioridade no critério do confronto direto (levara 0-1 dos escandinavos) e a Eslovênia com apenas o 1 da primeira rodada. Noruegueses e eslovenos não saíram do 0-0 em seu jogo, e nem seria preciso mais à equipe nórdica, uma vez que a Iugoslávia fazia 3-2 na Fúria. Aos ibéricos, com o um ponto a mais somado pela Noruega, sequer bastaria empatar aquela partida: era preciso remontar. Mas com que tempo? O jogo já estava nos 90 minutos quando Mendieta converteu pênalti para fazer 3-3. Só um milagre faria outro gol surgir. Um milagre nos acréscimos, obra de San Alfonso. Alfonso Pérez, jogador do Betis que depois se transferiria ao Barcelona, converteu em 4-3 o último lance ofensivo do confronto. A Espanha atingia 6 pontos, saía de eliminada a líder, e passava de fase ao lado da equipe dos Bálcãs.
Me voy a morir, bradaram os enrouquecidos e enlouquecidos locutores espanhóis ao fim daquele dia. Quem morreu foi sua seleção. Nas quartas-de-final, a França fez 2-1 na Espanha, encerrando mais um sonho desta. Também seriam encurtadas as esperanças das surpreendentes Turquia e Romênia, eliminadas ambas levando 0-2, para Portugal e Itália, respectivamente. O último jogo da fase foi também o adeus definitivo do selecionado iugoslavo. Tão forte nas décadas anteriores, sua despedida se deu com um melancólico 6-1 sofrido para a Holanda (três gols de Kluivert, dois de Overmars, e um de Govedarica, contra). Milosevic, nos acréscimos, fez o tento de honra. O último tento do país que depois jogaria eliminatórias e torneios como Sérvia e Montenegro, até se dividir totalmente (e continuar seu processo de fragmentação, como mostra a recente tentativa de Kosovo de se desmembrar da Sérvia).
A França voltou a fazer remontada nas semifinais, em jogo que reeditou o histórico confronto contra Portugal na Euro 84 – e cujo fim foi o mesmo, numa vitória sofrida, de virada, com gol salvador no fim. Nuno Gomes adiantou os portugueses aos 19 minutos, Henry igualou aos 51 e Zidane, na prorrogação, fez o 2-1 de pênalti, no minuto 117. O outro jogo foi ainda mais espetacular. Em Amsterdã, a local Holanda jogava contra a Itália em superioridade numérica desde os 33 minutos, quando Zambrotta foi expulso; suas vantagens foram além: os laranjas tiveram dois pênaltis a seu favor, um em cada tempo. O goleiro Toldo salvou o primeiro, cobrado por Frank de Boer, e Kluivert acertou a trave no segundo. Não era o dia da Holanda. Na prorrogação, a pressão incrível foi suportada pela azzurra que, com tanto heroísmo, só poderia triunfar nos pênaltis: depois de cair desde os onze metros nas Copas do Mundo de 1990, 1994 e 1998, vencia agora por 3-1 e avançava.
Avançava à final. E comemorava o gol de Delvecchio aos 55 minutos, no estádio Feijenoord em Roterdã. Comemorava o título antes da hora. Aquela imagem dos jogadores abraçados, vibrando com o título antes do final do jogo, foi fatal. Não poderiam julgar a partida ganha. Não numa Euro de recuperações. Por isso o gol de Wiltord aos 90 minutos da decisão foi tão destruidor. Ele fazia mais do que levar a decisão ao tempo extra: aniquilava todas as idéias de um time que já havia se acostumado com um pensamento de que não mais seria superado. Por isso a França foi dona completa da partida na prorrogação. E por isso Trezeguet surgiu na área italiana aos 103 minutos de confronto para, em cruzamento de Pires, emendar de primeira e fazer o golaço de ouro do 2-1. Numa Euro copeira, de remontadas, a França se tornava a única equipe a erguer o troféu continental logo depois de vencer uma Copa do Mundo.
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