Texto de Luis Fernando Veríssimo
Não sei de que material é feita a bola de futebol, hoje. Quando ganhei a minha primeira bola, ela era feita de couro. Tinha uma câmara dentro, como nos pneus. Enchia-se a câmara de ar com uma bomba de bicicleta – ou com os pulmões mesmo, naquele tempo se tinha fôlego – e ajeitava-se o mamilo da câmara dentro do couro da melhor maneira possível, antes de amarrar os cordões da bola, que tinham cadarços como as chuteiras. Isto tudo foi neste século, sim. Minha primeira bola tinha o tamanho regulamentar, era uma número cinco autêntica. Os locutores de rádio chamavam a bola de futebol de “a número cinco”, além de “o esférico”, “a pelota” etc. O couro da bola tinha cor de couro, ou então era um pouco mais vermelho. A bola pintada de branca só era usada em jogos noturnos, não era a verdadeira. O couro reluzia.
Hesitava-se muito antes de dar o primeiro chute na bola nova, pois o couro começaria a ficar arranhado no primeiro toque. Era um dilema, você não conseguia resistir ao impulso de levar a bola para a calçada e começar a narrar seus próprios movimentos com ela como um locutor entusiasmado – “domina a número cinco, atenção, vai marcar, dá de charles... goooool! Sensacionaaaaaal!” – e ao mesmo tempo queria prolongar ao máximo aquela sensação do couro novo, intocado, em suas mãos. A compulsão de sair chutando ganhava. Depois de dois dias de futebol na calçada, a bola nova estava irreconhecível. O couro ia empalidecendo como um doente. E a primeira coisa que desaparecia era o que depois mais perdurava na memória, o cheiro de novo. Nenhum prazer do mundo se igualava ao do cheiro do couro de uma bola de futebol recém-desembrulhada latejando em suas mãos. (Ainda não se tinha descoberto a revistinha de sacanagem.) Imagino que o nosso antepassado que pela primeira vez meteu a mão no buraco de uma árvore e depois lambeu o mel nos seus dedos tenha tido uma sensação parecida, a de que a criação é difícil mas dadivosa, e há mais doçuras no mundo do que as que se têm em casa. Quase tão bom quanto o cheiro da primeira bola era correr atrás dela, mesmo que só fôssemos craques na nossa própria apreciação (“Que lance, senhoras e senhores!” eu gritava, mesmo que só estivesse fazendo tabela com a parede). Correr atrás da primeira bola é o que nós todos continuamos fazendo, tamanhos homens, até hoje. E continua bom.
De algum momento entre 08/1997 e 09/1999. Retirada do livro “A eterna privação do zagueiro absoluto”.
Hesitava-se muito antes de dar o primeiro chute na bola nova, pois o couro começaria a ficar arranhado no primeiro toque. Era um dilema, você não conseguia resistir ao impulso de levar a bola para a calçada e começar a narrar seus próprios movimentos com ela como um locutor entusiasmado – “domina a número cinco, atenção, vai marcar, dá de charles... goooool! Sensacionaaaaaal!” – e ao mesmo tempo queria prolongar ao máximo aquela sensação do couro novo, intocado, em suas mãos. A compulsão de sair chutando ganhava. Depois de dois dias de futebol na calçada, a bola nova estava irreconhecível. O couro ia empalidecendo como um doente. E a primeira coisa que desaparecia era o que depois mais perdurava na memória, o cheiro de novo. Nenhum prazer do mundo se igualava ao do cheiro do couro de uma bola de futebol recém-desembrulhada latejando em suas mãos. (Ainda não se tinha descoberto a revistinha de sacanagem.) Imagino que o nosso antepassado que pela primeira vez meteu a mão no buraco de uma árvore e depois lambeu o mel nos seus dedos tenha tido uma sensação parecida, a de que a criação é difícil mas dadivosa, e há mais doçuras no mundo do que as que se têm em casa. Quase tão bom quanto o cheiro da primeira bola era correr atrás dela, mesmo que só fôssemos craques na nossa própria apreciação (“Que lance, senhoras e senhores!” eu gritava, mesmo que só estivesse fazendo tabela com a parede). Correr atrás da primeira bola é o que nós todos continuamos fazendo, tamanhos homens, até hoje. E continua bom.
De algum momento entre 08/1997 e 09/1999. Retirada do livro “A eterna privação do zagueiro absoluto”.
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