sexta-feira, 7 de março de 2008

É gol

Texto de Ignácio de Loyola Brandão

TORCIDA AMIGA,
BOA-TARDE:
Vamos iniciar mais uma
tarde esportiva.

Esse futebol que é a alegria do povo.
Futebol arte.
Futebol glória.

43:30 TEMPO 2 AFJFC OXO UDVFC

e
é gol.
gol gol gol gol
gooooooool
finalmente,
é GOL.
GOOOOOOOOOL
de Cacalo.

uma beleza de gol, torcida.
Cacalo, um a zero. Cacalo.

e
é gol.
gol gol gol gol
gooooooool
finalmente,

é GOL.
GOOOOOOOOOL
de Cacalo.

uma beleza de gol, torcida.
Cacalo, um a zero. Cacalo.

Uma beleza de gol, torcida. As bandeiras se agitam. O estádio explode. Gol de Cacalo a um minuto e meio do final. O gol da esperança. Da classificação. O gol que pode significar o campeonato. O gol que estava sufocado em todos os corações. Gol de craque. Cacalo. O menino que batalhou, brigou, suou, mostrou raça e talento. Um justo prêmio para o garoto desconhecido lançado ao fogo no jogo mais importante da rodada. A bola veio cruzada. Ele esperou. Se deslocou. Tirou o beque da jogada. Olhou o goleiro saindo e tocou de cabeça. Leve. Um toque sutil e a bola morreu no fundo do gol. Fala Flávio, você que está aí atrás da área, atento ao lance.

Muito bem, Mário. Você narrou a jogada com exatidão. A exatidão que faz da nossa equipe esportiva a melhor do rádio brasileiro. O goleiro ainda está tentando entender. O beque procura a bola. A jogada do centroavante que o técnico Moacir lançou hoje foi fenomenal. Começou na direita, com o ponta recuando e deixando a bola em corta-luz para o lateral. A defesa se atrapalhou, o lateral foi à linha de fundo. Ninguém deu combate, ele centrou. A área estava congestionada, o time inteiro recuado para garantir o zero a zero da classificação. Sem querer, procurei Santana na área. Jogada ideal para ele aproveitar. Tinha me esquecido que Santana foi substituído por Cacalo. Me fixei nele. Vi quando girou a cabeça, observando a colocação da zaga. Só dava camisa vermelha. A bola veio alta, deu ligeira caída. Cacalo subiu meio metro acima do central. O goleiro percebeu, quis sair para cortar. Então, Cacalo girou. Achei que ia cabecear com força. O central estava órfão de pai e mãe. A bola raspou pela cabeça de Cacalo e foi para o lado oposto. Se o goleiro se estica, quebrava a espinha. Jogada consciente, calculada. Craque é isso, Mário. Este menino sabe das coisas. Este gol pode salvar o time da crise que começou com a derrota da semana passada e ameaçava deixá-lo fora das finais. O técnico Moacir jogou tudo, e ganhou com a escalação de Cacalo.

Depois dos comerciais, vamos ouvir a opinião de Carlos Farias, o homem das oito copas. O comentarista que mais entende de futebol neste país.
(Continental: preferência nacional. O cigarro das multidões)

Com vocês, Carlos Farias.

(Farias tem à sua frente um binóculo, dois cronômetros, fichas, uma prancheta com anotações. Alto, magro, famoso por fumar cinqüenta cigarrilhas durante o jogo.)

Queridos amigos (Recomendação da direção artística: os ouvintes são queridos amigos). Acompanhei toda esta magnífica jogada com o meu binóculo produzido pela Figueiredo Vasconcelos. Quando o lateral, transformado em ponta, característica que o técnico Moacir adota muito, atingiu a linha de fundo, procurei a colocação do ataque. E encontrei Cacalo no bico esquerdo da grande área. Perguntei para mim mesmo o que ele fazia ali. Devia ficar mais infiltrado. Estava muito aberto numa área completamente congestionada, para usar a expressão do excelente repórter de campo, Flávio. Uma bola centrada seria facilmente rebatida. A bola veio, Cacalo correu. Não em diagonal, não em direção à marca do pênalti, uma vez que a bola vinha fechada. Correu para a meia-lua. Não entendi. Vi a bola raspando a cabeça do central Luisão e indo para a cabeça de Cacalo. Aí, percebi os reflexos deste garoto. Jogou a bola com o canto da testa para o lado oposto do goleiro que pererecava. Para mim, Cacalo percebeu que naquela área atravancada alguém tentaria rebater a bola de qualquer jeito. E se ele estivesse à frente, poderia apanhar uma sobra. Isso é o que faz o craque, queridos amigos. É o que reflete, arrisca, calcula, pensa diferente, contraria a lógica do futebol. Uma arte que não tem lógica. Fala Mário.

O jogo está confuso. Os jogadores fazem cera, esperando o tempo passar. O juiz aponta o relógio. Vai haver descontos, houve muitas paralisações, o jogo foi tumultuado. Sumiram as bolas. Como isso pode acontecer num estádio municipal? Aparece a bola, finalmente. Epa, epa, olhe lá, olhe lá. Queridos amigos, é inacreditável o que estamos presenciando. Inacreditável. Quem poderia supor que estamos em São Paulo, num jogo do campeonato, rodada decisiva? Parece muito mais a várzea, ou uma decisão de primeira divisão*...

Cuidado, Mário. Olhe que sou do interior e não admito desrespeito. Primeira divisão é violenta, mas não tem disso não. Além do mais, a várzea anda muito bem comportada e organizada. As grandes estrelas é que andam dando os vexames.

Torcida brasileira, o Flávio tem razão. Peço desculpas. Desculpas a essa gente boa e ordeira do interior do Estado. A esse povo tranqüilo e progressista que aos domingos lota os estádios para ver e apoiar os pequenos times que fazem a grandeza do nosso futebol. Perdão, queridos amigos. Eu não tinha intenção de ofender. Eu me referia a épocas passadas, a tempos que já vão longe. Perdão amigos da várzea, esta várzea imensa, celeiro de craques, verdadeiro repositório de novos talentos. Minhas homenagens à gente da várzea que acolhe igualmente com carinho os ídolos em fim de carreira, os ídolos envelhecidos que ainda têm pernas para se dedicar, cada domingo, a esse ato de amor com a bola, que é um jogo de futebol. Flávio, me parece que é o Comendador Bergamini que está aí tentando arrancar a bola das mãos do gandula?

Isto mesmo, Mário. O Comendador invadiu o campo. Quando o gandula ia devolver a bola, ele arrancou-a das mãos do funcionário e saiu correndo para o vestiário. O povo riu, porque o Comendador é gordo e desajeitado e com suas roupas berrantes e o charutão no canto da boca faz figura ridícula. Aliás, todos os cartolas de nosso futebol são ridículos, hein Mário? A polícia cercou o Comendador e ele correu para outro lado. Ficou um caça frango aqui embaixo dos mais pitorescos. Agora, a bola foi devolvida e o juiz adverte o Comendador. Mas quem é que liga? O Comendador é padrinho do filho de Ananias, o diretor do Departamento de Árbitros e não é o banana do Alencar que vai ter pulso para expulsar o Bergamini e colocar seu nome na súmula.

Aliás, o Carlos Farias tinha uma informação que precisaríamos apurar com muito cuidado. Teria sido Bergamini o maior interessado na escalação do Alencar para esta partida. Fala... Farias.

Bem, queridos amigos. Não podemos afirmar exatamente assim. O que nós da crônica comentávamos antes do início da partida é que nos parecia estranha a escalação do Alencar. Este juiz é o mesmo que se envolveu nos acontecimentos do jogo em que o União Açucareira foi eliminado dos quadros da Federação. Aliás, injustamente. Alencar provocou o União o tempo inteiro, acabando por expulsar nove. Foi cercado pelo time e depois anotou agressão na súmula. O União é um time pequeno. Não teve nem apelação. Perdeu em todas as instâncias, teve dez jogadores eliminados drasticamente do futebol, num acontecimento sem precedentes em nossa história. Mas quem tinha dúvidas que o União ganharia aquele jogo? E se ele ganhasse, outro time, cujo nome nem precisamos repetir, time grande aqui da capital, teria caído para a primeira divisão, inapelavelmente. Não havia chances. Ora, não sou eu quem afirma, mas a imprensa toda estampou, com fotos, um mês depois, a casa que Alencar comprou no Jardim São Paulo. Como é, Flávio, o jogo recomeça ou não recomeça?

O juiz tenta convencer o Comendador a sair de campo. Disse que vai acabar o jogo num minuto. Disse de modo muito claro, de maneira que o Comendador se tranqüilize que esse resultado ninguém vira. E não vira mesmo. Alencar dá vinte pênaltis, se for preciso.

Flávio, vamos aproveitar esta interrupção na partida para dar aos nossos queridos amigos alguns dados mais completos a respeito de Cacalo. O Machado, lá da central esportiva, poderia nos dizer quem é, e de onde veio este garoto?

(Força e vitamina. Iogurte com frutas da Nestlé. O iogurte dos craques.)

Ok, Mário, tenho aqui todos os dados. O Cacalo é o apelido de Carlos Carvalho. O apelido vem da sua gagueira. Quando se apresentou para a peneira há quatro anos, não conseguia dizer o seu nome, de nervoso. Só entenderam Ca Ca Ca lho. Aí um gozador disse: é o Cacalo, e ficou. Ele aceitou. Tem dezoito anos e esteve em dois times apenas. Tem seis irmãos. O pai é pedreiro e não gosta de futebol. Mede um metro e setenta e seis. Terminou o ginásio, não sabe o que vai fazer. Nos juvenis marcou dezesseis gols no último campeonato, foi artilheiro, com três gols acima do segundo colocado.

Só dezesseis?
Só.

Isto revela a crise de nosso futebol, torcida amiga. Até nos juvenis não se marca mais gols. E estes meninos despontam para o futebol já sem ânsia de gol. Ninguém quer competir. Todo mundo tem medo de perder. É preciso uma mudança total. Uma transformação nos sistemas e nas leis. Precisamos de gols e mais gols. Se estes meninos se orgulham com uma misséria de dezesseis tentos, onde está o futuro do futebol?

Muito bem dito, Mário. Suas observações são sempre justas e profundas. Você é o homem que conhece, sabe analisar. Por isso a nossa rádio ocupa a liderança, queridos ouvintes. Temos a melhor equipe esportiva do país. A que mais entende de futebol, o esporte das multidões, assim como Palhinha é o conhaque das multidões.

Veja aí o que diz o técnico Moacir. Agora, o jogo recomeçou. Toque para lá, toque para cá. Esse time de vermelho perde e ainda joga de lado. Como é que pode? Tem que ir para a frente! Até parece coisa combinada!

Mário, aqui está o técnico Moacir. Fala, Moacir. Que achou do gol de Cacalo?

Foi um belo gol.

O seu esquema de segurar o jogo esperando para ganhar nos contra-ataques quase não deu certo hoje. Foi bastante perigoso. Como você pretende jogar no próximo domingo?

Com onze jogadores. Um no gol, alguns na defesa, meio-de-campo e ataque.

Boa, essa, Moacir. Muito boa. Mas como é que esses jogadores vão se comportar? Como será o jogo?

Vai ser muito fácil. Os beques defendem. O meio-de-campo recebe a bola e distribui. Deve também destruir as jogadas adversárias. E o ataque vai procurar fazer gol. Claro?

Pois é, Moacir. Quando você precisa da imprensa, para se manter, você procura. Mas quando está por cima, vem com essas histórias.

Que histórias? O que você quer que eu responda, se esse jogo nem acabou ainda?

Você não acha que se arriscou muito e também quase queimou Cacalo, lançando o garoto numa fogueira destas? Logo no lugar do Santana, o goleador? Ídolo da torcida?

Santana? O goleador? Aquele negro sujo de cabelo pintado? Sabe o que ele fez? Na hora da escalação, disse: Só jogo se me derem mil cruzeiros por gol. E se me garantirem cem mil pelo campeonato. Tirei ele do time e avisei a diretoria. Vai ser colocado à venda.

Mas o Santana não está sem contrato? Será que ele não queria apenas garantia? Um seguro, ou coisa assim?

Que nada. Santana é mascarado. Só quer saber dele. De sociedade. E das buates. Mas a diretoria desta vez acaba com ele. Chega. Os jogadores neste país estão querendo ter direitos demais. Acabou o amor à camisa, a garra, a raça. Todo craque anda de salto alto... são todos...

Flávio, o técnico Moacir está muito exaltado. Melhor esperar. Todo mundo sabe que a situação do Santana é delicada, desde que ele começou a namorar aquela atriz da novela das dez. Como é mesmo o nome?

Não sei, Mário. Não sou homem de assistir novelas. Pelo amor de Deus. Chega dessa palhaçada que a gente tem visto no campeonato nacional. Ainda vou ver novela?

Santana não volta mais ao time. E quem vai querer um jogador como ele, irresponsável, malandro, que vive em boates, não treina?

Mas é craque, hein Mário? Craque demais. Quando joga o que sabe, não tem igual.

Mas só joga quando quer.

Bem, mas você tem acompanhado o que fazem com ele também, não? Sabe, né. Viu o técnico? É aquela do preto tem de saber seu lugar...

Flávio, vamos colocar os comerciais. Acho que o juiz está descontando, porque se passaram seis minutos do tempo regulamentar.

(Comerciais. BIC, a caneta que escreve. Com a BIC você não erra um só cartão da Esportiva. BIC, a caneta da sorte.)

Fim de jogo.

Um a zero que garantiu a classificação do time do povo. Festa nas arquibancadas. Delírio da multidão. Classificou-se quem lutou, batalhou, quem teve o maior volume de jogo. Seria uma injustiça o empate, torcida amiga. Um a zero. A torcida grita o nome de Cacalo...

É, Mário, mas passou mais da metade do segundo tempo a vaiá-lo. Lembra-se? Cada vez que ele punha o pé na bola, vaiavam. Agora, virou ídolo. Santana, esse já era pra esse povão aí.

É o futebol, torcida amiga. O futebol que é caprichoso, voluntarioso. Que faz e desfaz ídolos. Que traz glória e tristeza. Este é o futebol que nós amamos. O futebol que é arte, que é emoção, que é luta, que é paixão de um povo. Atenção, Flávio, não perca o Cacalo. O time está correndo para os vestiários.

Estou aqui no centro do campo, com o zagueiro Luisão. Como é Luisão? Como foi o lance do gol?

Uma infelicidade do nosso time que não merecíamos perder porque se a gente tivesse ido em cima na hora o lateral não centrava e na confusão a bola sobrou praquele menino que tacou pro gol sem apelação. Gritei pro Sílvio calçar o moleque que o moleque é medroso a gente deu uns afasta nele e ele não entrava na área a gente tava sossegado que ele não põe a perninha não. Porque o cara foi lançado hoje e a gente sempre faz isso um chega pra lá umas duas vezes pra mostrar que não tamos brincando. Mas demos azar e agora a gente vai pra outra, vem aí o campeonato paulista e o nosso time vai conseguir melhor colocação.

O cara aqui tá abatido e roxo de raiva com o gol que foi logo em cima dele. Estou procurando Cacalo. Está ali no meio de um monte de repórteres, quero ver se chego até lá... Iii, meu fio não está dando. Espera um pouco, Mário, que vou mandar chamar ele aqui. Olha, aqui está o diretor de esportes, Comendador Fulvio Bergamini.

Comendador Fulvio, o que achou do jogo?

Nosso time venceu com todo o mérito. O adversário foi bravo, resistiu. Mas quem tem Cacalo, tem tudo.

Cacalo é prata da casa, não?

Foi formado nos juvenis. Um grande menino. Vai dar o que falar. Essa é a nossa meta na direção do departamento de futebol. Renovação. Chega de estrelas, queremos sangue novo, não jogadores corrompidos.

E o Santana? Vai ser punido?

Punido? Por quê?

Ele se revoltou no vestiário.

Que o quê! Não houve nada. Santana estava contundido. Na hora da escalação, não teve condições.

Mas o técnico Moacir admitiu a revolta de Santana.

Não, nada disso. Está tudo em paz. Em ordem. O Moacir devia estar nervoso, precisava do Santana. Vou conversar com ele. Você gravou tudo?

Não, não gravei.

Bem, o Moacir não deve ter declarado nada. Você entendeu mal. Pergunte amanhã, com mais calma, pra ver.

Muito obrigado, Comendador Fulvio Bergamini. (Fora do ar) Parece, Mário, que vai ter bochicho no vestiário daqui a pouco.

Por que você não perguntou sobre os desfalques no clube, Flávio? O Comendador é da oposição, deve ter muito a dizer.

Para mim, são fofocas. Esse negócio é só fumaça. Não está nada provado, melhor não mexer.

(Fora do ar): Não quer mexer porque você torce para o clube, hein Flavinho? O que há rapaz? Conta logo. Você cobre o clube há dez anos, conhece tudo, pode rachar.

(Ainda fora do ar): O que você pretende, Mário? O que está insinuando? Sabe que quase quebrei a cara do Amaury porque disse que eu recebia dinheiro do clube? Afirmou que eu estava na lista de pagamento. E não provou.

(Um minuto para os comerciais. Caderneta de poupança é Casa Branca. A caderneta da Seleção.)

Flávio, vê se encontra Santana por aí.

Estou a caminho do vestiário.

E o Cacalo?

Espero ele lá. Meu fio não dá mesmo. Está ali recebendo o rádio, as bonecas, a máquina fotográfica. E ainda tem um grupo de respresentantes da torcida... Aliás, o chefe do grupo está aqui, rouco e suado. Quer falar...

CACALO, CACALO
Na área é um cavalo
Bola no peito,
bola na rede
bola no pé
bola no véu da noiva
O grande boleiro
terror dos goleiro.

(Fora do ar): Nisso é que dá abrir microfone pro povão. Só sai bobagem. Acho torcida um saco.

Que isso, Flávio? Precisamos deles. Somos uma rádio do povo.

E ele enche o nosso saco. Chamo você daqui a pouco do vestiário.

Dentro de alguns instantes, torcida amiga, vamos ouvir Carlos Farias, o homem das oito copas. O comentarista que consegue comentar. Fim de jogo. Bandeiras se abrem, bandeiras se fecham. Uns saem cabisbaixos, amargando a derrota. Outros saem contentes, com o sabor da vitória. Isso é que faz a magia do futebol. Amanhã, quem ganhou pode perder. E quem perdeu pode ganhar. A tarde escurece aos poucos. O povo ainda não saiu. Comemora nas gerais, nas arquibancadas, nas numeradas. O povo canta e dança, porque o time do povo venceu. E um novo herói, um menino de raça, valente, corajoso, um menino que enfrentou a torcida e os beques, se ergue no altar sagrado do futebol: Cacalo. Nome estranho que amanhã estará repetido em todas as bocas. Cacalo, moço humilde que soube aproveitar sua chance...

Alô, Mário. Falo dos vestiários.

E o Santana?

Sumiu. Aliás, está uma zorra aqui embaixo. Não dá pra falar com ninguém. Diretores batendo nas costas de todo mundo. O técnico Moacir continua prestigiado com a classificação.

Cacalo desceu?

Está entrando. Descobri que ele tem contrato só de gaveta. Amanhã vão acertar tudo. Sabe quanto ele ganha? Dois mínimos. Só isso. Pode? E sabe quanto o time levou de renda hoje? Novecentos mil, feitos os descontos. Aqui está Cacalo, já sem camisa...

(Uns dois segundos fora do ar.)

Flávio, arrancaram o fio da tomada. Assim não dá para trabalhar. Com licença amigo, com licença. Gente molhada, gente suada, três jogadores machucados seriamente, não vai dar para eles jogarem. O Miguel levou o terceiro cartão amarelo, não joga a primeira. Parece que foi de propósito, assim, ele joga as outras duas e pode entrar na final. Vai dar final com o time, claro. Viu a renda? Ei, Cacalo, vem aqui um pouquinho... Tudo bem, Cacalo? Como foi? Já deu a camisa?

Não, tirei, porque prometi a camisa pro Santo Antonio do Categeró. Amanhã vô levá lá na igreja dele, na Freguesia.

Devoto de Santo Antonio, Cacalo?

Muito.

É dele essa medalhinha?

Não, é de Ogum.

Como é que se sente?

Tudo bem. Foi um jogo bão. O adversário foi difícil. Mas deu sorte e tamos aí. Vamos pras final.

Teve medo de substituir o Santana?

O seu Moacir nem me deu tempo. Me jogou a camisa lá na concentração, fiquei tremendo.

O que houve com o Santana?

Não sei.

Dizem que queria dinheiro pra jogar. Verdade?

Pergunta prele, ora!

E o gol, Cacalo? Lindo gol. Conta para nossos amigos como foi.

Olha, nem sei dizê. Eu tinha levado um soco no rosto, estava tontão. Vi quando a bola subiu e desceu. Nem sabia onde tava. Corri pro meio. Aprendi com o Gatão, técnico dos juvenil. Ele fala que a gente é cachorrão. E a bola é um pedaço de carne. Você vai nela esfomeado. Quem vai com mais vontade, come mais. Então, quando vi que a bola ia caí pro meio, corri pra lá. Me deslocaram com um empurrão, eu ia cair. Vi que a bola bateu num de vermelho e veio pro meu lado. Fechei o olho, não dava pra fazê nada, estava sem equilíbrio. Ia batê na minha cara. Esperei a pancada. Mas a bicha veio mansa, raspô em mim. Nem sei como. Só sei que o becão gritou seu filhodaputa de merda, na próxima te quebro inteiro. E ouvi o povão gritando e quando abri o olho e olhei, vi as faixa, as bandeira, os meu companheiro pulando em cima de mim. Procurei a bola e vi ela no fundo do gol.

Um comentário:

Maurício Brum disse...

* À época em que o texto foi escrito, a segunda divisão paulista era chamada de "primeira divisão". Conhecia-se por "divisão especial" aquela que era a primeira divisão de fato.