sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

O suborno

Texto de Plínio Marcos

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, aos trinta e cinco, aos quarenta, aos quarenta da fase final, zero a zero aos quarenta minutos da fase final de um jogo decisão de título, decisão de título da segunda divisão, da maldita segunda divisão, zero a zero, zero a zero, zero a zero aos quarenta minutos, cinco pra acabar, e a bola rolando, rolando, rolando e atrás delas músculos, nervos, sangue de vinte e dois homens, de vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens rolando suas vidas atrás da bola, da bola miúda da segunda divisão, da segunda divisão do futebol do absurdo, vinte e dois absurdos profissionais dançam uma estranha dança que milhares de olhos seguem atentamente a cada lance, a cada lance, a cada lance.

Mas, só vêem o que aparece, o lance. Os socos, os pontapés, as cotoveladas, as escarradas, as escarradas, as escarradas, que se dão uns na cara dos outros, e os socos e os pontapés e as cotoveladas, que se dão uns nos outros, ninguém vê, ou finge não ver. A bola, a bola, a bola miúda dos tristes boleiros da maldita segunda divisão rola, rola, rola, e os vinte e dois têm que fazê-la rolar, rolar, rolar, e eles vão atrás dela, com fúria, uns no começo da carreira desesperados pra escaparem da maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo, e os outros desesperados, já com as pernas pesadas, injetadas de estimulantes, lutando agoniadamente pra não se acabarem, não acabarem de vez na maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo. E todos os vinte e dois, vinte e dois jogadores, jogando a vida e a morte, rolando seus desesperos e esperanças atrás da bola miúda, da miúda bola da segunda divisão, da decisão do título da maldita segunda divisão. Zero a zero, zero a zero, zero a zero. Trinta, trinta e cinco, quarenta minutos. Quarenta minutos da fase final, faltando apenas cinco minutos para o jogo acabar. Apenas cinco. E o juiz apita, apita, apita. Um jogador fica caído na área do adversário. O juiz apita, apita, apita pênalti. Zero a zero aos quarenta minutos da fase final do jogo decisivo do campeonato da segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol do absurdo. O juiz apita, apita, apita. Pênalti.

Pênalti, pênalti, pênalti. Tiro livre direto de pequena distância, penalidade máxima. Pênalti, pênalti, pênalti. O juiz apitou, apitou, apitou e correu pra área apontando a marca do pênalti. Pênalti aos quarenta minutos da fase final de uma partida decisiva. Pênalti. Pênalti. Pênalti. As torcidas berram aflitas, os jogadores correm pra cima do juiz, se empurram, se xingam, se xingam, se escarram nas caras uns dos outros, se xingam, se xingam, se xingam. Pênalti. Pênalti. Pênalti. Aos quarenta minutos da fase final de um jogo de decisão do título, do título, do título da maldita segunda divisão do futebol do absurdo. E ele, ele, o veterano em fim de carreira, ele que teve tantas glórias, ele que tem muita experiência, ele é que tem que cobrar o pênalti. Um pênalti, um maldito pênalti, apitado por um juiz que ele sabe, ele que é veterano, ele que teve tantas glórias, ele que tem muita experiência sabe, sabe bem, sabe muito bem que o juiz apitou aquele maldito pênalti, apitou aos quarenta minutos finais de uma decisão de título, apitou pênalti, pênalti, faltando cinco minutos para o fim do jogo, porque estava pago, pago pra influir no resultado. Pago, muito bem pago pra apitar o pênalti, só pago, muito bem pago, o juiz apitou, apitou, apitou o pênalti. Pênalti aos quarenta minutos da fase final de uma decisão de título. De título da segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol do absurdo, mas sempre uma decisão. E ele, logo ele, o veterano, o craque que teve tantas glórias, o craque que foi de seleção, que jogou na grande bola, que jogou nos grandes estádios, ele, o mais experiente do time, é que ia ter que chutar. Logo ele é que ia ter que chutar o pênalti aos quarenta minutos finais de um jogo de decisão de título, a cinco minutos do final do jogo decisão de título da segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol do absurdo, pênalti. E ele tinha que chutar. Ele, o veterano, o craque que teve tantas glórias, ele, o mais experiente do time.

Logo ele, que não conseguiu dormir na noite da véspera do jogo decisão, logo ele, que rolou na cama como um principiante assustado, logo ele, que perdeu a fome, logo ele, que pensou em se fingir de machucado pra não jogar, logo ele, logo ele, o veterano, o craque que teve tantas glórias, o mais experiente do time, é que ia ter que chutar o pênalti, o pênalti, o maldito pênalti apitado aos quarenta minutos finais de um jogo de decisão de título, apitado por um maldito juiz vendido, sujo como um porco, um bebedor de suor, chupador de sangue. E ele é que tinha que chutar o pênalti. O maldito pênalti. Ele, ele, ninguém além dele poderia naquele time bater aquele pênalti, ele o veterano, ele o craque que teve tantas glórias, ele o mais experiente. Ele, que por ser já um veterano, ele, justamente ele, que por ser o mais experiente, recebeu dinheiro, muito dinheiro, dinheiro pra não marcar nem aquele gol, nem nenhum outro gol naquele jogo, naquele maldito jogo da decisão de título da maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo.

Quando o repelente abutre imaginador de repelências o procurou com o dinheiro, com o dinheiro, com o maldito dinheiro para suborná-lo, ele teve ódio, muito ódio, um ódio terrível do repelente abutre imaginador de repelências. Sentiu vontade de esganar aquele maldito subornador, sentiu vontade de lhe arrancar a língua, sentiu vontade de fazer o repelente abutre imaginador de repelências engolir cada uma das malditas notas do dinheiro do maldito suborno. Mas, vacilou, pensou, pensou, pensou se devia escutar o repelente abutre expor a repelência, pegar o dinheiro e entregar para seu clube. E enquanto ele pensava, pensava, pensava, continha o ódio, continha, e o repelente abutre falava, falava, falava, mansamente, como quem não quer ganhar, pacientemente, como quem não quer perder.

– Seu nome, seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola, a sua grande bola, acabou, você acabou, acabou, acabou, todos que rolam nas voltas da bola, mesmo nas voltas da grande bola, na grande bola dos grandes craques, você acabou, acabou, acabou nessa triste bola miúda de segunda divisão, você usou as multicoloridas camisas vermelhas, vermelhas, vermelhas, as azuis, as verdes, as vermelhas, as amarelas, as verdes, as pretas, as brancas, as vermelhas, as vermelhas, usou todas elas, as multicoloridas camisas dos grandes clubes, mas onde estão elas? Descoraram e resta essa bola miúda da segunda divisão. Seu nome, seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola grande, tudo, tudo, tudo, reduzido a essa bola miúda da segunda divisão. E as pernas, suas pernas, as suas pernas? Como estão suas pernas? Comidas pela bola, com os ossos, os nervos, os músculos estilhaçados, assim estão suas pernas. E só resta para essas suas pernas esgotadas essa bola miúda da segunda divisão. E até quando resta? Até quando? E o que você tem de seu? Está rico? Pode parar de correr atrás da bola miúda? Eu te dou dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro.

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, trinta e cinco, quarenta minutos da fase final de um jogo de decisão de título, do maldito título, do maldito campeonato, da maldita segunda divisão, do maldito futebol do absurdo, aos quarenta minutos da fase final, e o maldito juiz, um juiz sujo como um porco, um bebedor de suor, um chupador de sangue, um juiz pago pelo repelente abutre imaginador de repelências, apita, apita, apita um pênalti, pênalti, pênalti que ele tem que cobrar, ele, justo ele, ele o veterano, ele que teve tantas glorias, ele o mais experiente, ele, justo ele, que pegou dinheiro pra não fazer nem aquele, nem nenhum gol naquele jogo. Maldito pênalti, maldito juiz, maldito jogo. Até ali, tinha sido fácil, fácil de enganar o técnico, diretores, companheiros, torcida. Até os quarenta minutos finais daquele jogo, ele, ele enganou, não precisou de muito pra enganar, na verdade ele enganava também o repelente abutre imaginador de repelências. Enganava a todos, a todos, a todos. Correr, há muito tempo não corria, lançar certo há muito não lançava, enervar os meninos há muito ele já fazia, reclamando de todos para esconder seus erros, nas divididas já há muito não ia. E era isso que o repelente abutre imaginador de repelências queria que ele fizesse, pagava pra ele fazer e era o que ele há muito vinha fazendo. Mas o pênalti, o pênalti, o maldito pênalti, o maldito pênalti apitado pelo maldito juiz aos quarenta minutos da fase final do jogo decisivo do titulo, do maldito campeonato da segunda divisão, da maldita segunda divisão, do maldito futebol do absurdo, o pênalti, o pênalti, o pênalti, era ele o veterano, ele o craque de tantas glorias, ele o mais experiente do time, ele é que tinha que chutar.

Zero a zero, zero a zero, zero a zero. Aos quarenta minutos da fase final do jogo decisivo do campeonato da segunda divisão do futebol do absurdo, o juiz, o maldito juiz, sujo como um porco, bebedor de suor, chupador de sangue, coloca a bola, a bola, a bola na marca do pênalti da penalidade máxima, e ele, ele o veterano, o craque de tantas glórias, o mais experiente do time, se coloca para chutar. Ele que recebeu dinheiro, dinheiro, dinheiro pra não marcar nem aquele, nem nenhum gol. Ele olha a bola, a bola miúda da segunda divisão, a bola que para ele já foi a grande bola de craque, a bola dos grandes estádios, a bola dos grandes contratos, a bola da seleção, e agora está ali miúda, miudinha, rolando quadrada, quente, a esmo, ele olha a bola, a bola, a bola e a trave, a trave, a trave, a meta, a meta, e embaixo da trave o goleiro, o goleiro pálido de espanto, atrás do goleiro o alambrado, a torcida pálida de espanto, e entre a torcida o repelente abutre imaginador de repelências com seu enorme nariz comprido, com seus olhos sem luz e sem brilho encravados nas amareladas e macilentas carnes de sua cara inexpressiva, com sua boca rasgada onde nunca aflora um sorriso. Ele vê, vê, vê tudo e espera a hora de chutar. O silencio desce pesadamente sobre o campinho de segunda divisão, as aflições se sufocam na garganta. Ele ganhou dinheiro pra não marcar aquele gol. Ele, ele, ele... ele pensa... Vê e revê toda a sua vida... Toda a sua vida... vida rolada atrás da bola... rolada atrás de títulos... Ele... ele... ele... atrás dele os adversários xingando, rogando praga, tentando enervá-lo, os companheiros sem querer olhar, ao seu lado o juiz, sujo como um porco, na sua frente a bola, o goleiro, a trave, o alambrado, a torcida e o repelente abutre imaginador de repelências. E ele decide. Vai marcar, vai marcar, acaba a carreira com um título, um título de segunda divisão, mas um título.

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos quarenta minutos finais, pênalti. O juiz apita, ele vai para a bola, bate nela com toda força, fecha os olhos, ouve o berreiro, o berreiro, o berreiro da torcida, vaias, vaias, vaias, ele abre os olhos. Os adversários se abraçam, ele errou. Seus companheiros choram, ele errou. Mas não queria errar. Não queria. Ele chora. Chora. Chora. Chora.

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, acabou o jogo da decisão do título da maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo. No frio, escuro, bolorento vestiário, ele, ele o veterano, o craque que já teve tantas glórias, o mais experiente do time, chora, e ninguém o consola, ninguém. Mas, o repelente abutre imaginador de repelências se aproxima e fala, fala, fala, mansamente como quem não tem nada a ganhar, pacientemente como quem não tem nada a perder.

– Você chora, chora, chora como um artista. Te vendo chorar assim até eu, até eu, chego a pensar que você errou sem querer.

Um comentário:

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