Nos anos 70, com critérios tão políticos quanto esportivos, clubes desqualificados de lugares remotos do Brasil eram convidados para ingressar no Brasileirão. Em 1979, o Campeonato Brasileiro chegou a contar com 94 clubes.
Luis Fernando Veríssimo, em uma crônica de 1977, reagiu com sarcasmo ao retrato do futebol nacional de então, numa irresistível previsão de como seria a "Copa Brasil em 78" (naquele ano, 74 equipes acabariam jogando o torneio). Abaixo, o texto, hoje bastante raro:
"Meu time, o Internacional, pertence a uma elite do futebol brasileiro, formada por três ou quatro clubes seriamente estabelecidos no negócio do futebol profissional. É uma minoria tão minoria que ainda não conseguiu organizar seus próprios campeonatos e é obrigada a disputar os torneios de integração nacional da CBD, uma entidade amadora, para manter a forma.
É por isso que os nossos jogadores, sempre que voltam das suas incursões pelo Norte bravio - tudo que fica na fronteira com Santa Catarina pra cima - chegam contando histórias terríveis. É verdade que lá as cobras usam camelôs vivos para atrair os nativos? É. Como foi a recepção no aeroporto? Mais ou menos: metade da diretoria do clube local tentou flechar o avião, a outra metade se ajoelhou na nossa frente e gritava "Grande Deus Branco sai dentro pássaro faz trovão, bem-vindo, se quiser caixa mágica transistorizada Zona Franca, Sony ou Minolta, grande desconto...". Nos hotéis a delegação só consegue quartos em troca de espelhos, pentes de plástico, chaveiros com safadeza e dólares. Para comer só tem paçoca e missionário protestante.
E os estádios? O Piranhão ainda vá, quando o rio está baixo, dá pra jogar, o único perigo são as areias movediças na pequena área e uma sucuri que às vezes aparece na ponta esquerda. Mas no Gláuber Rocha é impossível! O campo não é de grama, não é de terra, não é de areão - é de farelo de osso. O nosso goleiro foi enxotar um urubu pousado em cima do travessão e descobriu que era o presidente do clube. Reclemou para um guarda e o guarda mordeu o seu braço. O time deles joga de calção de couro e joelheiras de casca de coco. O Paulo César se chocou com um bode no meio de campo - o número 5 deles - caiu feito morto e quando viu tinha gente brigando pelas suas meias. Quer dizer... Só pra te dar uma idéia: o Valdomiro teve uma crise nervosa.
Mas isto não vai ficar assim. Vai piorar. Para o campeonato de 1978, a CBD pretende convidar mais 700 clubes. O critério para escolha é estritamente técnico: entra qualquer um. Entre os clubes que estrearão na Copa Brasil de 78 estão:
CLUBE ATLÉTICO ENDEMIAS RURAIS: De Algum Lugar, Minas Gerais. Até o ano passado, com sete anos de existência, o Endemias já tinha sido campeão da cidade sete vezes consecutivas. Aí fundaram outro clube e ele perdeu. Mas foi vice! O técnico Ceguinho declara-se adepto de um jogo rápido, ofensivo, com jogadores trocando constantemente de posições. O basquete. De futebol ele não gosta muito. A torcida um dia irritou-se com a insistência de Ceguinho em escalar determinado goleiro, gritou para ele escalar a sua mãe, ele escalou e a velha fechou o gol. Hoje é titular.
TERCEIRO REICH DE BOCHA, BOLÃO E UM BOM CHOPE DEPOIS: De Tripa Grossa (ex-Tu Me Paga), Rio Grande do Sul. Clube fundado por colonos alemães em 1935. Durante a guerra mudou de nome para Clube Recreativo Franklin Delano Roosevelt. A estrela do time é o centroavante Kurt Kraut (Escurinho) que certa vez errou em gol e derrubou um edifício de três andares atrás do estádio (o Salsichão). Quando o time entra em campo a torcida, em vez de papel picado, atira chucrute. Quando o time sai de campo, a torcida, revoltada, atira bolinhos de carne, joelhos de porco, pratos, talheres.
GRÊMIO LITERÁRIO AS MUSAS: De Pó, Ceará. Surpreendidas com o convite da CBD, as senhoras do As Musas primeiro mandaram um pacote de biscoitos-manteiga para Heleno Nunes, depois dedicaram-se freneticamente a montar um time de futebol. O primeiro convocado foi o joardineiro, que tem 70 anos, nunca jogou futebol, mas conhece alguém que tem uma bola.
FRACOS E OPRIMIDOS: De Onomatopéia, Roraima. O time mais humilde do país. Só entra em campo puxado pelo juiz, os dois bandeirinhas e o time adversário e geralmente desiste aos 10 minutos. O grito de guerra da sua torcida é "Não adianta! Não adianta!". Em vez de massagista tem um psiquiatra que, sempre que um jogador senta no campo, corre até ele, senta ao seu lado, oferece um cigarro e diz: "você quer conversar a respeito?".
MULTINACIONAL: De Fuligem, São Paulo. Quando o presidente do Multinacional ouviu dizerem que era um absurdo pagar tanto dinheiro para um ponta-esquerda quando uma professora primária do Estado se contentaria com um décimo daquele salário, perguntou, interessado: "E ela chuta bem com a canhota?". O primeiro time brasileiro a pagar bicho por vitória para o juiz.
Enfim, é tudo conspiração contra o Internacional."
(VERÍSSIMO, Luis Fernando. Amor Brasileiro. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1977. Páginas 23-25)
Luis Fernando Veríssimo, em uma crônica de 1977, reagiu com sarcasmo ao retrato do futebol nacional de então, numa irresistível previsão de como seria a "Copa Brasil em 78" (naquele ano, 74 equipes acabariam jogando o torneio). Abaixo, o texto, hoje bastante raro:
"Meu time, o Internacional, pertence a uma elite do futebol brasileiro, formada por três ou quatro clubes seriamente estabelecidos no negócio do futebol profissional. É uma minoria tão minoria que ainda não conseguiu organizar seus próprios campeonatos e é obrigada a disputar os torneios de integração nacional da CBD, uma entidade amadora, para manter a forma.
É por isso que os nossos jogadores, sempre que voltam das suas incursões pelo Norte bravio - tudo que fica na fronteira com Santa Catarina pra cima - chegam contando histórias terríveis. É verdade que lá as cobras usam camelôs vivos para atrair os nativos? É. Como foi a recepção no aeroporto? Mais ou menos: metade da diretoria do clube local tentou flechar o avião, a outra metade se ajoelhou na nossa frente e gritava "Grande Deus Branco sai dentro pássaro faz trovão, bem-vindo, se quiser caixa mágica transistorizada Zona Franca, Sony ou Minolta, grande desconto...". Nos hotéis a delegação só consegue quartos em troca de espelhos, pentes de plástico, chaveiros com safadeza e dólares. Para comer só tem paçoca e missionário protestante.
E os estádios? O Piranhão ainda vá, quando o rio está baixo, dá pra jogar, o único perigo são as areias movediças na pequena área e uma sucuri que às vezes aparece na ponta esquerda. Mas no Gláuber Rocha é impossível! O campo não é de grama, não é de terra, não é de areão - é de farelo de osso. O nosso goleiro foi enxotar um urubu pousado em cima do travessão e descobriu que era o presidente do clube. Reclemou para um guarda e o guarda mordeu o seu braço. O time deles joga de calção de couro e joelheiras de casca de coco. O Paulo César se chocou com um bode no meio de campo - o número 5 deles - caiu feito morto e quando viu tinha gente brigando pelas suas meias. Quer dizer... Só pra te dar uma idéia: o Valdomiro teve uma crise nervosa.
Mas isto não vai ficar assim. Vai piorar. Para o campeonato de 1978, a CBD pretende convidar mais 700 clubes. O critério para escolha é estritamente técnico: entra qualquer um. Entre os clubes que estrearão na Copa Brasil de 78 estão:
CLUBE ATLÉTICO ENDEMIAS RURAIS: De Algum Lugar, Minas Gerais. Até o ano passado, com sete anos de existência, o Endemias já tinha sido campeão da cidade sete vezes consecutivas. Aí fundaram outro clube e ele perdeu. Mas foi vice! O técnico Ceguinho declara-se adepto de um jogo rápido, ofensivo, com jogadores trocando constantemente de posições. O basquete. De futebol ele não gosta muito. A torcida um dia irritou-se com a insistência de Ceguinho em escalar determinado goleiro, gritou para ele escalar a sua mãe, ele escalou e a velha fechou o gol. Hoje é titular.
TERCEIRO REICH DE BOCHA, BOLÃO E UM BOM CHOPE DEPOIS: De Tripa Grossa (ex-Tu Me Paga), Rio Grande do Sul. Clube fundado por colonos alemães em 1935. Durante a guerra mudou de nome para Clube Recreativo Franklin Delano Roosevelt. A estrela do time é o centroavante Kurt Kraut (Escurinho) que certa vez errou em gol e derrubou um edifício de três andares atrás do estádio (o Salsichão). Quando o time entra em campo a torcida, em vez de papel picado, atira chucrute. Quando o time sai de campo, a torcida, revoltada, atira bolinhos de carne, joelhos de porco, pratos, talheres.
GRÊMIO LITERÁRIO AS MUSAS: De Pó, Ceará. Surpreendidas com o convite da CBD, as senhoras do As Musas primeiro mandaram um pacote de biscoitos-manteiga para Heleno Nunes, depois dedicaram-se freneticamente a montar um time de futebol. O primeiro convocado foi o joardineiro, que tem 70 anos, nunca jogou futebol, mas conhece alguém que tem uma bola.
FRACOS E OPRIMIDOS: De Onomatopéia, Roraima. O time mais humilde do país. Só entra em campo puxado pelo juiz, os dois bandeirinhas e o time adversário e geralmente desiste aos 10 minutos. O grito de guerra da sua torcida é "Não adianta! Não adianta!". Em vez de massagista tem um psiquiatra que, sempre que um jogador senta no campo, corre até ele, senta ao seu lado, oferece um cigarro e diz: "você quer conversar a respeito?".
MULTINACIONAL: De Fuligem, São Paulo. Quando o presidente do Multinacional ouviu dizerem que era um absurdo pagar tanto dinheiro para um ponta-esquerda quando uma professora primária do Estado se contentaria com um décimo daquele salário, perguntou, interessado: "E ela chuta bem com a canhota?". O primeiro time brasileiro a pagar bicho por vitória para o juiz.
Enfim, é tudo conspiração contra o Internacional."
(VERÍSSIMO, Luis Fernando. Amor Brasileiro. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1977. Páginas 23-25)
Um comentário:
Legal o post Mauricio!
Contido, não concordo com seu teor.
"Formulismos" nada tem à ver com opinião sobre uma fórmula ou outra.
Formulismo não é sinônimo de falta de organização, de falta de compromisso e de gestão sem resultados.
Sou adepto, sim, de um Camp. Brasileiro com uma Final que seja.
Eu já estaria satisfeito.
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