Os jogadores estavam exaustos. Entre o público, que diminuía conforme a tarde se encaminhava para virar noite, os comentários eram favoráveis a uma remarcação da partida. Enquanto o tempo regulamentar correra, seis gols fizeram um empate em 3 a 3, exigindo a prorrogação de vinte e cinco minutos – assim era naquela época. Vinte e cinco minutos, morte súbita, com nova prorrogação de mesmo tempo caso ninguém balançasse as redes. Pois já acabava o terceiro tempo extra de vinte e cinco minutos, mais de uma hora inteira de prorrogação, sem que o 3 a 3 fosse alterado.
Um martírio, aquele jogo interminável. Mas a organização do campeonato não aceitava adiamentos. Veio a quarta prorrogação daquele 6 de abril de 1902, e enfim o gol. Aos 175 minutos de tempo corrido, o Racing de Roubaix fazia 4 a 3 e conquistava o Campeonato Francês daquela temporada, organizado pela União das Sociedades Francesas de Esportes Atléticos (USFSA), em paralelo com um torneio de outra associação (as múltiplas ligas nacionais só seriam unificadas em 1932). A vibração dos de Roubaix, que manteriam o título nas duas temporadas seguintes, compartilhava a cena com o lamento dos derrotados. Do lado oposto, um outro Racing, o de Paris, saía da longa partida marcado pelo fracasso.
E essa é a sina do Racing Club de France, nome original da equipe, até hoje. A final de 1902 é uma metáfora de uma história que cruza três séculos com delírios de grandeza e frustrações (mais frustrações que delírios de grandeza) e termina na ausência de glória. Fundado em 1882 como clube de atletismo, o decano da capital criou seu departamento de futebol em 1896, e dominou os torneios parisienses na primeira década do século XX. Depois de 1902, o time seria derrotado em outras três finais do campeonato nacional da USFSA, vindo a conquistar seu único título em 1907, vencendo o próprio Racing de Roubaix na decisão.
Outros troféus menores ingressariam nas vitrines do clube nos anos seguintes, até a paralisação provocada pela Primeira Guerra Mundial. O Racing desmobilizado encontrou uma Paris sob as ordens do Red Star, do Olympique e do Club Français quando os campeonatos foram retomados. Foram os ventos do profissionalismo que varreram a França no final da década de 1920 que ajudaram no refortalecimento do Racing – o mesmo profissionalismo que, com más administrações, resultaria na míngua atual do clube.
Mudanças nos anos 1930, despencar nos anos 1960
Na temporada 1929/30 o Racing chegou à sua primeira final da Copa da França, voltando a sucumbir em uma prorrogação, agora diante do Sète. A campanha prenuncia os bons resultados da sequência. Em 1932 ocorre a já citada unificação das ligas nacionais e a criação do Campeonato Francês profissional, com o Racing Club de France inscrevendo-se com o nome de Racing Club de Paris e adotando um pinguim como mascote. Dali em diante, por longos anos, o Racing forte do início do século foi revivido. Em 1936, o clube conquista um doublé, com os títulos do Campeonato e da Copa da França. Mais títulos da Copa viriam em 1939, 1940, 1945 e 1949 (com um vice em 1950).
O clube mantém importantes resultados no campeonato, porém as boas equipes não são capazes de se aproximar do título por duas décadas. Em 1961 o Racing volta a brigar pelo topo, sendo vice-campeão por questão de um ponto (56 seus contra 57 do Monaco) e, em 1962, após se igualar em 48 pontos com o Stade de Reims no primeiro lugar, é vitimado pelo esdrúxulo critério de desempate da época: o goal average, uma divisão dos gols feitos pelos gols sofridos. O quociente do Reims, que vencera por suspeitos 5-0 na última rodada, dá 1,38 (83 gols feitos, 60 sofridos) contra 1,37 do Racing (86 e 63). A taça era afastada de Paris por um gol – a ironia suprema para uma equipe que teve o melhor ataque do Campeonato Francês durante cinco temporadas consecutivas, até 1963.
A falta do título ajudou a antecipar a queda do time. Em dificuldades financeiras, sem conseguir atrair jogadores jovens, o Racing mantém uma base com média de quase trinta anos e, ainda que continue com o seu ataque forte, tem agora uma defesa peneirada. Além de tudo o time perde Roger Marche, zagueiro histórico que se aposentou depois da frustração de 1962, encerrando oito temporadas trajando a camisa alviceleste. A decadência é esboçada com o 10º lugar em 1962/63, e se confirma em 1963/64: na mesma temporada em que o Racing faz a sua única participação internacional, jogando a Copa das Feiras (antecessora da Copa da UEFA), em que é eliminado pelo Rapid de Viena na estreia, ele fica em antepenúltimo lugar e é rebaixado à segunda divisão nacional. Desesperado, o clube tenta uma fusão absurda com o Sedan, com sede a 250 km de Paris e que jogava na elite, mas o acordo é desfeito em 1967, deixando o Racing quebrado e obrigado a disputar campeonatos amadores durante os quinze anos seguintes.
Retomada, o delírio Matra e o fim
Desde 1970, com a fundação do Paris Saint-Germain, o futebol da capital francesa estava nas mãos de um único clube. Era pouco, mas todos os grandes de outrora cambaleavam nas divisões inferiores. Aparece em 1982 um visionário, Jean-Luc Legardère, milionário do setor industrial, para tentar reavivar o esporte parisiense. Ele funde o Racing com o Paris FC e, à la Kennedy, traça a meta: chegar a uma competição europeia até o fim da década.O problema das metas é realizá-las, e o empresário deve ter percebido isso quando o clube, sonhador, subiu à primeira divisão para a temporada 1984/85 e foi chutado de volta para o nível inferior como lanterna. Dois anos depois, o novo regresso é acompanhado de pesados investimentos. O clube é agora chamado Matra Racing (adotando o nome da indústria automobilística, aeronáutica e armamentista controlada por Legardère) e traz para as suas linhas nomes do calibre do uruguaio Enzo Francescoli, do alemão Pierre Littbarski, além dos craques da Seleção Francesa Pascal Olmeta, Thierry Tusseau e Luis Fernandez, este vindo do PSG.
Se os indícios eram interessantes, os resultados de campo seguiam maldizendo o Racing. Em 1987, um mísero 13º lugar no campeonato. Em 1988, uma 7ª posição que não levava a lugar algum. Em 1989, o Racing termina no 17º lugar, empatado em pontos com o rebaixado Strasbourg, salvando-se pelo saldo de gols. Não alcançando o objetivo de tornar o clube grande novamente até o fim da década e cansados de gastar dinheiro, Legardère e sua Matra abandonam o barco ao final da temporada. Deixam como herança, mais uma vez, um Racing falido. Os jogadores também debandam. O clube arruinado ainda disputa uma improvável final de Copa da França em 1990, depois de 40 anos sem aparecer nela, mas é um devaneio num ano outra vez péssimo. O decepcionante vice-campeonato diante do Montpellier na decisão foi fichinha frente ao que o campeonato trouxe: 19º lugar e rebaixamento à segunda divisão. Mais: sem condições financeiras para manter o profissionalismo, o Racing opta por descender direto à terceira divisão, amadora, a partir da temporada 1990/91.
E lá segue até hoje. Lá, entenda-se, no amadorismo, não na terceira divisão – porque o Racing anda tão mal das pernas que, atualmente, chafurda na quarta. Um 14º lugar no obscuro Grupo D do CFA, o Campeonato Francês de Amadores, é isso que resta ao velho campeão. Para assistir a um jogo do clube, é preciso ir aos subúrbios da capital francesa, em Colombes. É longe, quase não compensa a viagem. Perguntando-se a um taxista parisiense por que visitar o Stade des Colombes, a resposta mais provável será o valor histórico, que a decisão do futebol nas Olimpíadas de 1924 foi lá e a final da Copa do Mundo de 1938 também. Sendo ele um árabe ou um africano, como muitos dos taxistas de Paris, é bem provável que desconheça que, num domingo qualquer, você pode encontrar o Racing jogando naquele campo, como faz há 89 anos. Na melhor das hipóteses, ele citará o time de rugby. Porque o futebol do Racing, acompanhado por poucas dezenas de abnegados por rodada, sobrevive apenas pela tradição. Como se estivesse em uma longa e dolorosa prorrogação da sua existência – sem chances de vencer, contentando-se em resistir.
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