Em abril de 1940, a Alemanha nazista invadiu a Dinamarca e a Noruega, levantando incertezas no Reino Unido. Temendo que as Ilhas Faroe, então um condado dinamarquês (hoje um território autônomo daquele país) localizado ao norte da Escócia, fossem usadas estrategicamente pelos alemães, Londres reagiu enviando uma missão preventiva de ocupação, que permaneceu no arquipélago até o final da Segunda Guerra. Não foi um acaso, portanto, que o primeiro campeonato faroês de futebol tivesse sua realização incentivada para apenas dois anos depois da chegada britânica.
O campeonato iniciado em 1942 revelou potências em clubes conhecidos por siglas: o KÍ, de Klaksvík, o B36, da capital Tórshavn, e o TB, de Tvøroyri. Todos muito fortes nos primeiros anos, nenhum suficientemente bom para impedir o avanço do HB, outro da capital, nas décadas seguintes. Em 1955, primeira temporada em que a Copa das Ilhas Faroe foi disputada, o HB conquistou a taça do torneio eliminatório e do campeonato, esta também inédita na sua galeria, e inaugurou séries que o fizeram chegar aos dias de hoje como maior vencedor das duas competições – são 19 campeonatos e 26 copas.E assim é. Cria-se um campeonato, aparecem os grandes clubes que o dominarão, voltemeia alguns menores têm brilho efêmero, e a coisa anda até o fim dos tempos num ritmo conhecido. Mais um pouco de espera e aí vem uma seleção nacional a convocar os melhores jogadores desses clubes, para se tentar a sorte contra outros países. Assim é, sempre. Mas para umas ilhotas que contam hoje com 48 mil habitantes e não possuem independência plena, esses passos são dados mais lentamente. As Ilhas Faroe só tiveram sua Federação futebolística reconhecida em 1988, esperando até as Eliminatórias à Eurocopa de 1992 para conseguir jogar as suas primeiras partidas oficiais.
Tanto tempo reduzido ao cenário doméstico, o futebol faroês estava ainda despreparado quando deu esse salto. Não possuía atletas profissionais. Não possuía um único estádio dentro das normas internacionais. Por isso Torkil Nielsen não pôde ver o nascimento da sua filha.
Torkil era um fenômeno esportivo. Três vezes campeão faroês de xadrez, conciliava sua habilidade para mover bispos, torres e cavalos com a capacidade de driblar oponentes quando jogava futebol. Sua qualidade para os padrões nacionais era tanta que, apesar de jogar no pequano SÍF, clube da segunda divisão sediado em Sandávagur, sua vila natal de 700 habitantes, foi lembrado nas convocações para o selecionado faroês. Em 1989 marcou o primeiro gol da equipe, na vitória por 1-0 sobre o Canadá em amistoso, e gerou comparações entusiasmadas com o norueguês Simen Agdestein. Jogador do Lyn de Oslo e da Seleção da Noruega entre 1984 e 1992, Agdestein também mantinha uma vitoriosa carreira como enxadrista.
Não sendo famoso nem profissional como Agdestein, Torkil Nielsen só podia rir daquelas analogias. E, como tampouco contava com a estrutura do futebol norueguês ao seu lado, o atleta de 26 anos teve que viajar para Landskrona, Suécia, disputar a primeira partida oficial das Ilhas Faroe em todos os tempos – o jogo era contra a Áustria, o mando de campo era faroês, mas grama natural, exigência da FIFA, não havia nos estádios das Ilhas. No dia 10 de setembro de 1990, por telefone na concentração, Torkil recebeu da namorada Jana Egilstoft a notícia do nascimento da filha do casal. Na distância, uma motivação. Dois dias depois, a menina descobriria quando tivesse idade para isso, o pai viraria herói nacional.
Ainda que pouco brilhante para os mais exigentes, a Áustria vinha de uma participação na Copa do Mundo da Itália, três meses antes. Suas linhas eram preenchidas por bons jogadores, como Andreas Herzog, e do outro lado estavam, oras, onze amadores. A goleada era quase uma obrigação dos austríacos, que se diziam capazes de obter um dez a zero. Evitar isso, a utopia de Torkil e seus companheiros. Jens Martin Knudsen, goleiro faroês famoso por usar uma pitoresca touca de lã durante os jogos, virou personagem dos três quartos de hora iniciais, suportando a pressão da Áustria e sustentando um comemorado zero a zero até o intervalo. A irritação dos adversários era evidente. Aos 60 minutos, após Knudsen afastar de soco uma bola cruzada, o austríaco Kurt Russ mandou para fora a melhor oportunidade do seu time, errando da goleira aberta. Russ atirou-se ao chão, desesperado, como que dizendo em algum dialeto germânico: “não entra maiß”.Aos 61, entrou. Do outro lado do campo.
Cobrado o tiro de meta. Bola no ataque faroês. Torkil Nielsen tem à sua frente um marcador dominando displicentemente a bola. Rouba-a. Corre à área, livra-se de um segundo zagueiro que tenta um carrinho de último recurso (para fazer “uma falta profissional”, como ironizaria depois o narrador faroês), invade o quadrilátero defensivo austríaco e manda o tiro de canhota. O goleiro Michael Konsel reage muito tarde. Torkil skorar! Eitt-null til Føroyar! Torkil Nielsen úr Sandavági! – delira Árni Gregersen, o locutor da TV das Ilhas Faroe. Um a zero para as Ilhas. A Áustria, em pânico, faz duas substituições logo após o gol, mas é inútil. Nada mais impede a inacreditável vitória faroesa na sua primeira partida oficial da história.
Pouco mais de 1,5 mil espectadores, boa parte deles vindos desde o arquipélago, saúdam enlouquecidos aqueles triunfantes amadores. Na volta para casa, a delegação é recebida com pompas de conquista de título. As Ilhas Faroe não venceriam outro jogo naquelas eliminatórias; Torkil, o herói máximo, nunca mais faria gols pela Seleção nem lograria títulos no xadrez, mas o feito de Landskrona estava pronto para ganhar ares de lenda e ser aumentado com o passar dos anos. Os times austríacos, desde a colossal surpresa de 1990, convivem com aquele peso nas costas. No último sábado, em Tórshavn, os velhos fantasmas foram recordados: a agora-profissional-e-podendo-jogar-em-seu-solo Seleção das Ilhas Faroe encerrou uma série de 18 derrotas consecutivas ao empatar por 1-1 com a Áustria.
Um comentário:
Maneiro o post. Legal saber sobre o campeonato faroês de futebol.
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