Eu devia ter uns quatro anos na primeira vez em que entrei no estádio 19 de Outubro, levado pelo meu pai. Supostamente para ver o jogo. Na realidade, para quebrar cascas de amendoim no cimento da arquibancada. Brotam cascas de amendoim num estádio. E elas pedem para que alguém vá lá e as raspe no concreto áspero, quebre-as, simule-as como aviõezinhos em rota de colisão inevitável com algo. Ao menos na minha cabeça de criança de quatro anos, elas pediam.
Depois comecei a me interessar pelo futebol. Descobri que jogadores não eram, afinal, mudos – ora, como ia saber se o som deles se comunicando em campo não chegava até as cadeiras? –, e abriu-se um mundo de novas possibilidades em torno da bola. Agora podia ouvir rádios e esperar entrevistas, declarações. Algumas decepcionantes, como um certo atacante do São Luiz justificando a ausência de gols com um “às vezes o goleiro atrapalha”, outras mais animadoras, como os treinadores das equipes adversárias que vinham a Ijuí, nos venciam, e iam embora dizendo que “o São Luiz é um grande clube e sairá dessa situação”.
Em 2003 não saiu, e fomos rebaixados para a Segundona. Lamentável! O São Luiz, que eu vira conquistar a Copa Mais Fácil, um magnífico pentagonal de interioranos em 1999 (contra Caxias, Passo Fundo, Santo Ângelo e Veranópolis!), agora teria que enfrentar Ipirangas de Sarandi por duas míseras vagas na primeira divisão, na qual o clube parecia ser participante eterno. Felizmente, a Segundona era muito mais do que aparentava. Além de durar mais que a primeira divisão, mostrava-se um reduto do verdadeiro futebol, aquele carregado na honra.
Cavalos paraguaios em 2004, quando começamos arrasadores e batendo recordes de invencibilidade (destaque para o goleiro Donizetti e seus 527 minutos sem levar gol) e caímos na penúltima fase, conseguimos a recuperação em 2005: a trajetória foi parecida, incluiu vitórias, empates copeiros e derrotas apenas fora de casa, e dessa vez terminou com acesso e título. Desde então, o 19 de Outubro voltou a viver tardes e noites do não-tão-guerreado-quanto-a-Segundona-mas-ainda-assim-superior-a-ela Gauchão. E o estádio ijuiense converteu-se em grande trunfo do São Luiz.
Basta ver os jogos dentro de casa pelo estadual nas últimas três temporadas: somente três derrotas, duas delas contra o Grêmio, por um gol de diferença (no ano passado, um placar histórico de 4-5). Em 2008 empatamos com o Inter e ainda desperdiçamos um pênalti. O Juventude? Risos intermináveis e uma vitória por quatro a zero que prenunciava o futuro caxiense, patético, de vice-campeões com oito a um nas costas e gol de Clemer.
Essas contra os times de grife são as jornadas de antologia. Ocupam a maior parte de uma memória de torcedor, dividindo espaço com a lembrança de jogadores de passagem formidável por aqui, como Paulo Gaúcho, Chiquinho e, bem recente, Ronaldo Capixaba. Aparecem juntamente, claro, com imagens de estádio lotado ou, no mínimo, muito cheio. Em meus mais de dez anos quebrando cascas de amendoim e vendo o São Luiz fazer o mesmo com seus adversários, o 19 de Outubro jamais teve público decepcionante em partidas do rubro. Nem mesmo em amistosos.
Terça-feira e hoje eu encarei o 19 de Outubro vazio, sem jogos. Depois de ter entrado no Santiago Bernabéu e no Comunal de Aixovall, em Andorra, não acreditava que o estádio mais conhecido por mim pudesse ser tão fascinante. Mas é. Enquanto o vento soprava, amenizando o sol escaldante que refletia nas muradas brancas atrás da goleira sul, eu podia observar toda a cidade cercando o estádio. A cidade que se desenvolveu por pessoas que simplesmente vieram para cá ou então nasceram, cresceram e morreram aqui. Pessoas que, podendo não ter nada em comum além de morar em Ijuí, conviveram obrigatoriamente com o campo da baixada. E todas elas, em algum momento da vida, talvez tenham estado com suas emoções diretamente ligadas ao que acontecia sobre aquele gramado, como ainda hoje milhares de ijuienses e corregionais sentem o coração bater acelerado cada vez que o São Luiz entra em campo.
Porque se Ijuhy “surgiu” em 1890, o futebol começou a ser jogado nessa pequena depressão menos de trinta anos depois. Roubou para si esse pedaço de área urbana e não se bandeou mais. Nada mais que um estádio vazio, diz o pseudointelectual, o que vê no esporte um ópio do povo e nos campos um instrumento de alienação. Uma silenciosa testemunha da história, vez por outra sendo cenário de alegrias para os que a construíam, digo eu.
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Amanhã, fotos de um 19 de Outubro vazio.
2 comentários:
tem algo de triste, um estádio vazio. ainda mais quando o estádio vazio pode ser dito seu.
Depende das circunstâncias do vazio. Um 19 de Outubro tu sabes que está apenas adormecido, no aguardo. Não é triste como um Wolmar Salton ou outros campos abandonados, mortos e sem futuro.
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