A vitória do selecionado brasileiro na Suécia foi perfeita. Jogadores e técnicos abriram uma reta entre o cepticismo irônico do começo e a pura alegria nacional de domingo. Uma campanha metódica e segura fez o milagre. Quando partiram daqui, quem esperava a taça do mundo? Mas à proporção que se desenrolavam as partidas, um número cada vez maior de pessoas indiferentes ao esporte se ia identificando com a sorte deles, sentindo-se transportadas ao local da peleja e dela participantes, e no fim a confiança era tamanha que já não se afetaria com um mau resultado. Se perdêssemos, seria terrível, mas isso não abalaria nossa fé nos atletas, teria sido uma derrota individual nossa, imposta pelo capricho das coisas, injusta sem humilhação.
Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia e que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores práticos. Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de espírito, poder de adaptação e superação. Não se trata de esconder nossas carências, mas de mostrar como vêm sendo corrigidas, como se temperam com virtualidades que a educação irá desvendando, a de assinalar o avanço imenso que nossa gente vai alcançando na descoberta de si mesma.
Esses rapazes, em sua mistura de sangues e de áreas culturais, exprimem uma realidade humana e social que há trinta anos oferecia padrões menos lisonjeiros. Do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples trabalho não dera ensejo.
Mas agora, vemos o futebol operando ou espelhando ainda maiores transformações, pois a conquista do campeonato mundial demonstrou a meu ver um maior entrosamento de forças sociais, a máquina burocrática do esporte deixando e operar suas porcas e parafusos de intriga, ambição e politicagem; consciência mais funda dos dirigentes; carta branca aos peritos para os trabalhos de formação e aprimoramento da equipe; e a contenção geral para evitar transbordamentos emocionais prévios, comprometedores do equilíbrio psíquico dos esportistas. Tudo isso, em termos de educação nacional, é confortador, e permite alongar a vista para mais longe do campo de jogo, dá à gente um certo prazer matinal de ser brasileiro, menos por haver conquistado a Taça Jules Rimet do que por havê-la merecido. Prazer límpido, sem xenofobia: é justamente por nos sentirmos iguais a outros povos capazes de vencer campeonato que nos despimos de pretensões de superioridade ou domínio político.
No mais, é celebrar como começamos a fazer no primeiro gol e não sei quando acabaremos, que isso de sofrer rente ao rádio, vezes e vezes repetidas, embora de coração esperançoso ou por isso mesmo, exige expansão compensadora e farta, ai meu Deus, minha Nossa Senhora da Cancha, meu Senhor Bom Jesus do Tiro em Meta! Como deixar de lançar papeizinhos ao ar, sujando a cidade mas engrinaldando a alma, e de estourar bombas da mais pura felicidade e glória, mesmo que arrebentemos os próprios tímpanos, se não há jeito de reprimir a onda violenta de alegria que se alça até nos mais ignorantes do futebol, criando esse calor, essa luz de unanimidade boa, de amor coletivo, de gratidão à vida, que hoje nos irmana a todos?
^ Ainda que o texto tenha sido publicado dois dias depois, é uma perfeita referência contemporânea do que ocorreu no 29 de junho de 1958, exato meio século atrás, e tem sido lembrado a toda hora na imprensa: por meio do futebol, o Brasil se fazia grande e esperançoso – acabava com o complexo de vira-latas. Naquele domingo, encerrou uma campanha inquestionável com um 5-2 sobre a Suécia na final da Copa do Mundo, trazendo de volta para casa o primeiro título na competição que viria a dominar. Uma conquista que teve Djalma e Nilton Santos, teve Didi, Vavá, Zagallo e Garrincha. Teve alguns dos melhores nomes do futebol brasileiro em todas as eras, mas teve, acima de qualquer outro, o imparável Pelé. Então com 17 anos, autor de seis gols em quatro atuações naquela campanha, carregaria da Escandinávia, além da Jules Rimet, o eterno reconhecimento de Rei do Futebol. Nas palavras do próprio Drummond:
Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia e que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores práticos. Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de espírito, poder de adaptação e superação. Não se trata de esconder nossas carências, mas de mostrar como vêm sendo corrigidas, como se temperam com virtualidades que a educação irá desvendando, a de assinalar o avanço imenso que nossa gente vai alcançando na descoberta de si mesma.
Esses rapazes, em sua mistura de sangues e de áreas culturais, exprimem uma realidade humana e social que há trinta anos oferecia padrões menos lisonjeiros. Do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples trabalho não dera ensejo.
Mas agora, vemos o futebol operando ou espelhando ainda maiores transformações, pois a conquista do campeonato mundial demonstrou a meu ver um maior entrosamento de forças sociais, a máquina burocrática do esporte deixando e operar suas porcas e parafusos de intriga, ambição e politicagem; consciência mais funda dos dirigentes; carta branca aos peritos para os trabalhos de formação e aprimoramento da equipe; e a contenção geral para evitar transbordamentos emocionais prévios, comprometedores do equilíbrio psíquico dos esportistas. Tudo isso, em termos de educação nacional, é confortador, e permite alongar a vista para mais longe do campo de jogo, dá à gente um certo prazer matinal de ser brasileiro, menos por haver conquistado a Taça Jules Rimet do que por havê-la merecido. Prazer límpido, sem xenofobia: é justamente por nos sentirmos iguais a outros povos capazes de vencer campeonato que nos despimos de pretensões de superioridade ou domínio político.
No mais, é celebrar como começamos a fazer no primeiro gol e não sei quando acabaremos, que isso de sofrer rente ao rádio, vezes e vezes repetidas, embora de coração esperançoso ou por isso mesmo, exige expansão compensadora e farta, ai meu Deus, minha Nossa Senhora da Cancha, meu Senhor Bom Jesus do Tiro em Meta! Como deixar de lançar papeizinhos ao ar, sujando a cidade mas engrinaldando a alma, e de estourar bombas da mais pura felicidade e glória, mesmo que arrebentemos os próprios tímpanos, se não há jeito de reprimir a onda violenta de alegria que se alça até nos mais ignorantes do futebol, criando esse calor, essa luz de unanimidade boa, de amor coletivo, de gratidão à vida, que hoje nos irmana a todos?
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^ Ainda que o texto tenha sido publicado dois dias depois, é uma perfeita referência contemporânea do que ocorreu no 29 de junho de 1958, exato meio século atrás, e tem sido lembrado a toda hora na imprensa: por meio do futebol, o Brasil se fazia grande e esperançoso – acabava com o complexo de vira-latas. Naquele domingo, encerrou uma campanha inquestionável com um 5-2 sobre a Suécia na final da Copa do Mundo, trazendo de volta para casa o primeiro título na competição que viria a dominar. Uma conquista que teve Djalma e Nilton Santos, teve Didi, Vavá, Zagallo e Garrincha. Teve alguns dos melhores nomes do futebol brasileiro em todas as eras, mas teve, acima de qualquer outro, o imparável Pelé. Então com 17 anos, autor de seis gols em quatro atuações naquela campanha, carregaria da Escandinávia, além da Jules Rimet, o eterno reconhecimento de Rei do Futebol. Nas palavras do próprio Drummond:
E vem outro, mais outro dia.
Paira a esperança, junto à fé.
A bola em flor no campo: jóia,
E seu ourives é Pelé.
Paira a esperança, junto à fé.
A bola em flor no campo: jóia,
E seu ourives é Pelé.
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