Descobriram um homem branco perdido na selva amazônica. Estava nu, mas coberto até os joelhos pela própria barba e tinha os olhos arregalados de um louco. Não conseguia articular palavras. Da sua boca só saía o som de pássaros.
– Quem é você?
– Guak!
– De onde você vem?
– Quim, quim, quim!
Levaram o homem para um posto médico e tentaram lhe dar comida. Ele repeliu a comida cozida. Estava acostumado a só comer frutas e insetos. A água tratada lhe dava nojo. Queria água barrenta.
– O que foi que lhe aconteceu?
– Rorrok! Piuim! Piuim!
Mas aos poucos o homem foi perdendo seu aspecto selvagem. Cortaram a sua barba, que tinha até ninhos. Limparam as fístulas do seu corpo, que eram colônias de parasitas. Ele perdeu seu ar de doido. Começou a comer um pirãozinho, a tomar um cafezinho. Recuperou a fala. Lembrou-se do próprio nome (José, tinha quase certeza de que era José) e aos poucos foi se lembrando do resto. Contou que fazia parte de uma expedição, e que se perdera na floresta com um guia e um rádio. O guia era um mau guia. Era por sua causa que tinham se perdido. O rádio, ao contrário, funcionava. Mas não transmitia, só recebia. Durante meses ele e o guia tinham vagado pela floresta. Um dia o guia fora comido por um jacaré. Era um mau guia, mas não merecia aquilo. Depois José continuou a vagar pela floresta, escapando da morte dezenas de vezes. Só com o rádio como companhia. E neste ponto se sua narrativa, José parou, seu rosto iluminou-se com uma súbita lembrança e ele perguntou:
– Falar nisso, quem foi que ganhou a Copa?
– Que copa?
– A de 50. No Maracanã. Brasil e Uruguai. Eu estava ouvindo o jogo. O rádio pifou logo depois do gol do Friaça. O Brasil ganhou?
As pessoas em volta da cama se entreolharam. Parecia obsceno dizer para aquele homem, depois de todo o seu sofrimento, a verdade.
– Claro que ganhou – disse alguém.
Outro improvisou os detalhes.
– Três a zero. Dois gols de Ademir.
– Eu sabia! – disse o homem. – O velho Queixada...
Nos dias que se seguiram, quem chegasse no posto médico era advertido:
– Olha, se ele comentar a Copa de 50, foi o Brasil que ganhou. Três a zero.
– Mais cedo ou mais tarde ele vai descobrir...
– Mas não precisa ser agora. Afinal, o cara passou 40 anos comendo lagartixa...
José foi transferido para um centro maior mas continua em tratamento. Todos os dias pede para saber um pouco mais sobre o que aconteceu depois da nossa vitória em 50.
– Deve ter havido uma semana de carnaval, foi não?
– Uma semana? Um mês! Uma loucura. Até o Dutra caiu no samba.
– O Dutra! Quem ganhou as eleições de 50?
– Foi... deixa ver. O Getúlio.
– Velho Getúlio... E deu certo?
– Deu. Depois da vitória na Copa de 50, tudo deu certo no Brasil. O Getúlio governou até 55 e se aposentou, depois veio o Juscelino que também foi ótimo, depois um chamado Jânio Quadros, outro sucesso...
– E a inflação?
– Que inflação? Teve um, chamado Collor, que acabou com ela de um golpe. Foi outro grande presidente.
– E esse Itamar?
– Fantástico.
As pessoas só estão um pouco apreensivas com o jogo de hoje. Acham que o José não está em condições de ouvir o jogo. Mas o José está despreocupado. É o mais despreocupado de todos.
– Medo do Uruguai? Por quê? O Uruguai nunca foi bicho!
E desta vez José vai ver o jogo pela televisão. Nada de um rádio já no fim das suas forças, onde mal podia se ouvir o locutor gritando “Gol do Friaça! Gol do Friaça!” no meio da selva.
* Na noite de 19/09/1993, o Brasil enfrentaria o Uruguai pela última rodada das eliminatórias para a Copa do Mundo, no Maracanã, e precisava vencer para garantir vaga no mundial. O Brasil aplicaria 2-0 nos celestes, dois gols de Romário.
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