domingo, 30 de dezembro de 2007

Sahibi, Waldar e Faki Marara

O texto abaixo é uma raridade encontrada pelo Futebesteirol. Uma jóia colhida ao acaso, mas de valor rapidamente notado: um conto sobre a final do Campeonato do Chade de 1988. Era a primeira edição daquela competição e, na final, enfrentavam-se dois quadros da capital: o Renaissance FC e o Tout Puissant Elect-Sport. Abaixo, você confere a primeira adaptação para o português de mais uma entre as tantas lendas que povoam o imaginário do futebol - no caso, do futebol africano. A versão original, em francês, pode ser conferida aqui.

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Sahibi, Waldar e Faki Marara

Sábado, 30 de julho de 1988. Apenas cinco horas da manhã quando os N'djamenses foram tirados de seus sonos. Não pelo cocoricó habitual de nosso dig (galo, em árabe local), mas por gritos de jovens acompanhados por sons de ganga (tambor). Esta manhã incomum é anunciadora de um grande jogo de futebol, que vai opor, na final do campeonato, duas grandes equipes da capital: o Renaissance Football Club (RFC), time dos funcionários da alfândega, e o Tout-Puissant Elect-Sport, equipe da Sociedade Chadiana de Energia Elétrica (STEE, na sigla em francês). Em todos os lugares da cidade, vemos torcedores em carros, motos, a pé e em grupos, tremulando bandeirolas nas cores verde e vermelha do Renaissance e amarela e preta do Elect-Sport. Os N'djamenses se preparam para assistir a este jogo louco de futebol*. Entretanto, Sahibi e Waldar, amigos desde a infância vivida no bairro AC, localizado atrás do comissariado de mercado, não estão seguros da vitória de seu time, o Renaissance. Eles têm medo que sua equipe perca o jogo, expondo-se assim às "flautas" no bairro, o que seria uma decepção terrível, pois não é segredo para ninguém que os N'djamenses são mestres na gozação.

Após muitas fikir (reflexões), os dois amigos consideram necessário visitar um feiticeiro para lhe explicar o problema. Após muito procurar, eles descobriram que havia um bom no bairro Gardolé, atrás do Palácio do Congresso. Chamava-se Faki Marara, conhecido assim pelos locais por gostar de carne. Era um grande feiticeiro - muito exigente, mas valeria a pena, afinal, era necessário que o Renaissance ganhasse. Com sua moto Honda c75, Sahibi e Waldar chegam na casa de Faki Marara.

Este, após lhes cumprimentar, acolhe-os em sua sala de trabalho, mal iluminada por um lampião a óleo. Faki Marara, vestido todo de branco, com acessórios muito estranhos, sorriso nos lábios, pede a Sahibi e Waldar:

- Rapazes, o que vocês procuram com um grande feiticeiro como eu?
- Nós temos um grande problema.

Os dois amigos contam ao feiticeiro que sua equipe, o Renaissance, vai jogar nesta noite, e eles querem ganhar a partida crucial a qualquer preço. Eles estão em dúvida quanto à vitória e por isso foram vê-lo. O feiticeiro, não conhecendo o futebol, pergunta aos dois amigos:

- Tudo bem. A partir do momento em que vocês vêm aqui, o vosso problema está resolvido. Mas... como se joga o futebol?
- É um jogo que se joga com os pés. - Responde Sahibi.
- Nesse caso, eu amarrarei os pés de vossos adversários. Nenhum de seus pés ousará marcar gol. - Explica o feiticeiro, fazendo uma careta.

Faki Marara acrescenta também que, em 50 anos de carreira, ele jamais fracassou no seu trabalho, e promete que a equipe adversária vai ser humilhada juntamente com todos os seus torcedores. Satisfação garantida ou dinheiro devolvido. Mas, para bem cumprir sua missão, Faki Marara exige 50 mil francos CFA (africanos), que os dois amigos pagam sem discutir, para depois saírem confiantes em sua moto, rumo ao estádio de La Concorde.

Eram 18 horas, e o jogo começaria em 30 minutos. O estádio estava lotado de torcedores, vestidos, na maioria, com as cores de suas equipes - a tal ponto que o estádio se encontrava dividido em duas partes: uma toda em amarelo e preto e outra em vermelho e verde. Nesse estádio tão lotado, quase explodindo, os assovios, gritos e outros barulhos são ensurdecedores. Nessa atmosfera, digna dos grandes jogos, Sahibi e Waldar, trajando também o verde e o vermelho, tomam lugar ao lado da tribuna Galaxie, com alguns mandawa (amendoins) nas mãos. Em meio a essa tensão imensa, o cronômetro parece andar mais rápido. Após um primeiro tempo em zero a zero e uma etapa final parecida, chegamos ao 90° minuto de jogo, com a bola no campo defensivo do Renaissance, quando um cruzamento do número 11 do Elect-Sport encontra a cabeça do centro-avante, que não hesita em marcar. Era uma catástrofe apavorante para Sahibi e Waldar. Pior, eles perderam duas vezes: o dinheiro e o jogo. Inimaginável! Os torcedores invadem o gramado gritando "Tout Puissant Elect-Sport! Renaissance chora", "Tout Puissant Elect-Sport! Renaissance chora", "Tout Puissant Elect-Sport! Renaissance chora".

Decepcionados, humilhados, os dois amigos decidem, antes de tudo, recuperar o seu dinheiro com Faki Marara. Uma vez diante do mesmo, este sorri de orelha a orelha, perguntando-lhes:

- Eu creio que vocês ganharam?

Vendo que os dois amigos mantinham o rosto fechado, Faki Marara logo compreendeu o que se passava. A seguir, Sahibi interrompe o silêncio pesado, perguntando ao feiticeiro:

- Pare com seus joguetes, devolva nosso dinheiro.
- Isso não tem importância. Diga-me como eles ganharam. - Pede, muito pausadamente, o astucioso Faki Marara.

Foi assim que os dois começaram a explicar que o único gol da partida, o gol do título, foi marcado por um atacante adversário, de cabeça, a partir de um centro no último minuto, e eis que perdemos o jogo. Após alguns minutos de silêncio, Faki Marara, em suas estranhas roupas, murmura algo e começa a explicar:

- Rapazes, eu fiz meu trabalho como deveria. Vocês me disseram que o futebol se joga com os pés. Eu fiz tudo para impedir vossos adversários de marcar com os pés, e vocês me dizem que eles marcaram com a cabeça. Este é um outro trabalho, que exige um outro feitiço. Isso não foi culpa minha.

E eis que Sahibi e Waldar retornam para casa cabisbaixos, sem vitória, sem dinheiro.

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* O texto, em francês, faz um trocadilho com o nome do esporte e a palavra "louco" (fou), escrevendo "fou fou foot". A repetição, sem sentido em português, foi excluída nesta adaptação.

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