sexta-feira, 23 de março de 2007

A marca dos mil

Maracanã, 19 de novembro de 1969. 90 mil fanáticos por futebol estavam no mágico cenário do futebol nacional. Todos movidos por um objetivo: ver Pelé marcar seu milésimo gol.

Então com 29 anos, Pelé ainda estava no auge da forma, buscando a recuperação plena para jogar a Copa do Mundo de 1970, pela Seleção Brasileira. Marcado pela técnica, raça e precisão, o Rei do Futebol marcava gols às dezenas, todos os anos. Por isso mesmo, chegava tão cedo à possibilidade de alcançar aquela marca maravilhosa: o primeiro "artilheiro de 4 dígitos".

O mundo estava com os olhos voltados ao futebol brasileiro naquela temporada. Famosas publicações internacionais davam destaque ao fato que se aproximava e, em qualquer canto do planeta bola, havia um fanático fazendo as contagens regressivas rumo ao gol mil. Dentro do Brasil, este fenômeno foi naturalmente amplificado. O país, em êxtase, acompanhava os jogos do Santos, sempre à espera dos gols do Rei, reduzindo cada vez mais a distância para o sonho. E, ao longo do ano, os gols iam acontecendo. Na "reta final" da contagem, quando faltavam menos de 10 gols para o milésimo, muitos clubes brasileiros começaram a se interessar pela idéia de sofrer o gol histórico. Nunca se quis tanto levar um gol, e houve inclusive jogos onde o adversário "amoleceu" a partida para facilitar a vida de Pelé. Mesmo assim, o Rei, consciente dessas facilitadas por parte dos adversários, muitas vezes evitou ir em demasia ao ataque, para que o gol não ficasse marcado por ter ocorrido numa "marmelada".

Desta forma, Pelé chegou aos 999 gols. Por uma sabedoria do destino, o jogo onde o milésimo gol poderia ocorrer estava marcado no local onde Pelé tantas vezes se consagrou e de onde saíram alguns dos capítulos mais especiais do futebol: o Maracanã. O jogo em si não tinha grande importância oficial. Válido pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o Robertão (ou Taça de Prata), o jogo opunha o Santos e o Vasco da Gama, em um confronto apenas para cumprir tabela, pois as duas equipes já não tinham chances de classificação. Mesmo assim, nenhuma partida, em nenhum lugar, atraia mais atenções e era mais importante do que aquela - só se falava no gol mil.

Diferentemente dos adversários anteriores do esquadrão santista, o Vasco da Gama havia feito um pacto de não sofrer o milésimo gol naquele dia. Poderiam perder a partida, mas Pelé não marcaria - esta era a intenção. A primeira prova disso foi numa bola cruzada na área: Pelé estava lá dentro, pronto para cabecear - sem qualquer dúvida, René, do Vasco, mandou a bola contra suas próprias redes, antes que o Rei pudesse interceptá-la. Era um gol contra, mas não era um gol de Pelé, e este era o objetivo do Vasco. Mas o Santos seguia pressionando. O jogo estava em 1x1 e o goleiro vascaíno Andrada converteu-se numa muralha insuperável, até que...

Pelé, sempre ele, fazia outra grande jogada quando o mesmo René do gol contra derrubou-o na área. Pênalti. Todos no estádio queriam que o Rei batesse. Pelé hesitou - como ele próprio confessaria mais tarde, aquela fora a primeira e única vez em que temeu bater uma penalidade máxima durante sua carreira. Mesmo assim, Pelé sabia da sua responsabilidade e foi para a cobrança.

O Rei correu para a bola com o coração palpitante. Deu a paradinha. Andrada não se moveu, ele não deixaria aquela bola entrar. E então veio o chute, à meia altura, no canto esquerdo. Andrada saltou certo, mas não conseguiu impedir que a bola entrasse, no mínimo espaço entre sua mão e a trave. Gol! O gol mil! O Maracanã veio abaixo, Pelé corria em direção ao fundo das redes para pegar a bola do tento histórico e beijá-la, enquanto toda a imprensa invadia o campo, para entrevistá-lo. Ninguém notou, na hora, que Andrada ficou socando o chão, inconsolável, por não ter pego a penalidade - muitos goleiros veriam naquilo a glória máxima de sua carreira, entrando para a história, mas, ironicamente, ali estava um que se portou com honra do início ao fim, disposto a evitá-lo.

A emoção era generalizada. Um Pelé lacrimejante era cercado por todos os que estavam no campo, querendo participar e registrar a história. Aproveitando-se do momento e do destaque mundial daquele instante, Pelé, num ato de grandeza, dedicou o gol "às criancinhas pobres do Brasil". Como ele próprio diria anos mais tarde, em entrevista, "se tivéssemos olhado pelas crianças brasileiras a partir daquela noite, agora não teríamos mais de trinta milhões de menores vivendo na mais absoluta miséria".

Pelé superaria de longe a marca do milésimo gol, encerrando sua carreira de glórias, títulos e atuações deslumbrantes, com 1.281 gols em 1.366 jogos, sendo até hoje o maior artilheiro mundial em todos os tempos.

Os mil gols eram um marco jamais superado até então e, ninguém, por melhor que tenha sido, conseguiu chegar perto de alcançar os 4 dígitos nas décadas que se seguiram. Eis que em 2007 aparece Romário, outro brasileiro, definido por muitos como o "Pelé da grande área", próximo a repetir o feito do Rei do Futebol. Romário, consagradíssimo no futebol, 41 anos, contabiliza todos os gols de sua carreira (desde aqueles marcados em times juvenis) e montou sua invejável lista de gols feitos. Tendo se tornado um nômade do futebol nos últimos anos, buscando aproveitar todas as chances de aumentar sua artilharia histórica, o "baixinho" contabiliza atualmente, segundo suas contagens, 998 gols. Defendendo as cores do vasco da Gama, Romário está muito próximo de repetir a história, e tornar-se o segundo jogador a alcançar tal número. Novamente o Vasco está envolvido e, novamente, o destino parece brincar de tornar a história mais espetacular do que já seria percorrendo os caminhos normais: 38 anos depois, o Maracanã poderá ser o palco de outro milésimo gol. Tudo está em suspenso e a expectativa é que os dois gols faltantes saiam já nesta partida.

Domingo, às 18 horas e 10 minutos, todos os caminhos levarão ao Maracanã, onde um novo capítulo e uma nova lenda do futebol podem ser escritos.

Nenhum comentário: