domingo, 19 de outubro de 2008

Os reais de Javi

Faz anos que Javi conheceu alguns sul-americanos durante um encontro internacional qualquer e terminou com novos amigos. Deles, ouviu que deveriam se encontrar uma hora dessas, ver como as coisas se passaram nos anos seguintes. Eram brasileiros. Queriam dizer o contrário, um até nunca, mas Javi não percebeu. Levando a sério o reencontro, usou as suas férias estranhamente marcadas para outubro para descer ao Brasil. Foi por uma dessas improbabilidades da vida que Javi, espanhol, torcedor do Atlético de Madrid, estava ontem no sul do mundo, em meio à Expoijuí.

Arrependido.

Primeiro porque metade dos supostos amigos não apareceu. Eles não queriam aparecer e nem no Rio Grande moram. Javi precisava entender que aqui as distâncias são maiores e não há trens que o levam para onde quiser. Não há trens levando, por exemplo, para Irruí. Não, Javi, Ijuí. A outra parte do desânimo, que o fez querer desistir da viagem e da vida quando percebeu na tabela da Liga, vinha do fato de o sábado ter um dérbi de Madrid marcado. No Calderón.

Ele poderia estar lá. Mais, ele sabia do significado de estar lá: seu Atleti não vencia um clássico citadino desde 1999 e, após aquilo, nunca formara um time tão bom quanto o desta temporada. Ao vir para Irruí, assinava a desistência de receber, in loco, a carta de alforria colchonera perante a dominação do rival. Pois o Atlético não ia perder aquele jogo, zumbia na sua cabeça enquanto comprava o ingresso para entrar no Parque de Exposições e perguntava aos amigos que apareceram onde podia acompanhar a partida lá dentro – algum canto com internet, já que o futebol espanhol no Brasil virou propriedade de um risível canal-peiperviu-pegatrouxa da Sky.

Javi preocupou-se tanto em como ouvir a Cadena COPE online que só percebeu que o troco do ingresso viera com um real a mais depois de já estar dentro do parque. Tivesse notado antes, devolveria. Resolveu guardar. E no momento em que punha a moeda no bolso da calça, um colega avisava, olhos no notebook conectado à rede por um modem da Vivo, que o placar do Marca mudara para 0-1. Tão cedo? Tão cedo. “¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡Gooooooooolllllllll del Real Madrid!!!!!!!! Golazo de Van Nistelrooy. El holandés recibe cerca del vértice izquierdo, Heitinga le deja distancia y engancha un zapatazo pegado al palo que bate a Leo Franco”, descrevia o minuto-a-minuto do site do periódico. Trinta segundos de jogo no Calderón, zero a um Real Madrid.

A maldição, a maldição. Quase dez anos sem vencer um dérbi. Dez anos à sombra do rival, que empilhou taças enquanto o Atleti nada mais fez do que cair para a segunda divisão e voltar, sem roçar outros títulos. A maldição não acabaria nunca? Nem com o Kun? Bom, se não havia acabado com Torres...

O link da COPE enfim entrou. Agora seria na emoção do rádio, e não num frio acompanhamento escrito, que as imagens se fariam na mente. Javi esperava ouvir seu tocaio, o Pérez Sala, narrando, mas não se decepcionou com o estepe escalado para comentar o jogo. Por ele, descobriu como o seu time estava sendo favorecido pela arbitragem nota zero do aragonês Clos Gómez, que anulou erroneamente dois lances de gol do Real Madrid e expulsou Van Nistelrooy aos 39 minutos injustamente, para compensar o cartão vermelho mostrado ao colchonero Luis Perea nove minutos antes.

Mas nem a mãozinha do juiz mudava a realidade do zero a um. As tentativas do Atlético morriam como se uma força maior impedisse o time de ir além. Até Agüero errava passes fáceis. Sentado diante de uma pizza na Casa Italiana, Javi não tinha fome. Impaciente, batia com a sua moedinha de real na mesa, sem diálogo com os amigos, apenas torcendo. Não sabia mais se torcia para o time ir bem ou para o narrador se entusiasmar mais a cada ataque alvirrubro, indicando que o time estava bem. Era tudo a mesma droga, perceberia depois, mas nos minutos em que Clos Gómez, de novo ele, paralisou o jogo para tratar uma lesão dele próprio, o dilema inútil levou seus pensamentos muito longe.

Mais erros do Kun. Mais tempo perdido. Mais um ano de maldição sem vitória em dérbis? Talvez não. O Atlético já engolia o Real Madrid naqueles minutos finais da partida. Vezemquando, os comentaristas da COPE chegavam a silenciar para que os cânticos da torcida colchonera ocupassem o espaço do áudio. Aquele era o ambiente do estádio, confiante mesmo diante do pouco tempo. O som emocionava Javi, incomodava os outros que estavam na casa, e era indiferente para uma surda que passava por ali pedindo dinheiro para caridade. Um real. A moedinha que não devia ter chegado às mãos de Javi e o acompanhou na aflição agora seria usada por uma boa causa. Caridade, um real pra surda.

Isso quando o jogo de Madrid chegava aos quarenta e cinco do segundo tempo e as esperanças, apesar da iminência do apito final, cresciam. Tinha uma falta, o Atleti. Uma falta frontal à área. Viriam muitos minutos de acréscimo, porém aquele era o lance da partida. Dizia o narrador que era a última chance para o Atlético mudar a história – e a sua sorte. Simão agarrou a oportunidade. Mandou uma excelente cobrança para superar a barreira e Casillas, empatou a partida. O Calderón explodiu em vozes emocionadas. Mesmo em Irruí, Javi sentia seu peito apertar e a vontade de soltar a voz como se estivesse em uma das gradas do estádio. Haviam empatado. Mais: agora Clos Gómez pedia seis minutos de acréscimo. “Vamos a remontar”, berrou um torcedor próximo aos microfones do rádio. O Atlético estava melhor. E possuía agora tempo e vontade de sobra para vencer a partida.

A lógica era essa. Infelizmente para Javi e os seus companheiros de torcida, ela nada vale no futebol. E menos ainda no que diz respeito ao clássico madrilenho. Jogar dérbis, ao Atlético, é um trabalho de Sísifo. Há quase dez anos. Torna-se inexplicável o azar de um time que empata uma partida aos noventa para perdê-la aos noventa e seis, estando melhor, como em tantas outras jornadas encerradas em derrota. Aos noventa e seis, cobrando um pênalti estupidamente cometido por Heitinga, Higuaín, o homem dos gols nos acréscimos, pôs o um a dois em favor do Real Madrid. “Ley de vida” – definiu o Marca. E não há outra forma de qualificar tal maldição. O Calderón pulsante murchou. O Javi que vibrava e socava o ar calou. Seus amigos não sabiam o que dizer para consolar.

Pela 14ª vez consecutiva, um dérbi sem vitória do Atlético. Na saída da Casa Italiana, o deprimido Javi encontrou uma moeda de um real no chão. Outra. Agora não tinha boas ações a fazer com o dinheiro que novamente não devia ter chegado às suas mãos. Somou-o com as notas que trazia no bolso e comprou uma caipirinha. Para esquecer a década.

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